11 de novembro de 2010

Os contos de uma psicanalista

O Diário do Comércio publicou há algum tempo a seguinte resenha:


As duas vertentes da delicadeza e do melindre, por Sylvia Loeb


Em seu novo livro de contos-poemas, “Amores e tropeços”, lançado pela Editora 3nome, a paulistana Sylvia Loeb, que é de formação psicanalista, mas está consagrada como ficcionista de linguagem altamente elaborada, à altura de seus temas profundamente humanísticos, consegue reunir numa única criação tanto o duplo conceito do termo “delicado”, como a dupla noção do vocábulo “melindroso”. Seus textos sobre o amor e seus tropeços, textos profundamente carnais, como o amor mais sensual, e textos ao mesmo tempo intensamente espiritualizados, como o amor mais enlevado, são delicados, tanto no sentido de que uma carícia é delicada, como no sentido de que um paciente em situação crítica se encontra em estado delicado. Esses textos também são melindrosos nos dois sentidos dessa palavra: no de que uma mulher formosa e encantadora é “melindrosa”, e no sentido de que um episódio embaraçoso, ou um estado terminal, é “melindroso”.

Por exemplo, o primeiro conto, de título “Amor! Meu amor!”, diz tudo em pouquíssimas palavras: “Socorro! O amor que tenho não dá para dois, me ajude a salvar nosso amor, ela implora”. Vamos no deter inicialmente em considerações sobre o título. O primeiro “Amor!” poderia ser ao mesmo tempo em si uma invocação e/ou uma menção ao sentimento em geral e em si do amor, como pode ser um chamado dirigido à pessoa amada; já o “Meu amor!” tanto pode ser uma referência ao sentimento da própria pessoa, como um apelo à pessoa amada por ela. No entanto, no texto propriamente dito do conto-poema, “Socorro!” é indubitavelmente um apelo à outra pessoa.

Já “O amor que tenho” é uma referência delicada a um assunto melindroso: tanto pode significar “o sentimento que me imbui” como “a minha sexualidade”, que “não dá para dois”. Isto é, de uma maneira delicada e melindrosa, em todos os sentidos dos dois termos, se denota que tanto “o sentimento que me imbui” como “a minha sexualidade” não gozam de plena autonomia e de plena autossuficiência, muito menos são capazes de sustentar uma relação a dois, Pois o que poderíamos chamar de “o meu amor que só dá para mim” tanto pode ser um egoísmo como um sentimento por outra pessoa que não desperta a reciprocidade dessa outra pessoa; indo mais longe, pode acontecer de que “o meu amor que só dá para mim não é suficiente nem para mim”. Em termos mais carnais, a castidade, ou a masturbação, não são uma felicidade tão plena quanto o amor sexual a dois.

Quanto a “me ajude” indica que a pessoa que faz o apelo está consciente de que tem uma necessidade a preencher, e mais ainda, de que não pode preencher essa necessidade sozinha, precisa da ajuda de outra pessoa, e de uma outra pessoa específica, não de qualquer outra pessoa, pois a pessoa que apela se está dirigindo ao seu “amor”, no caso, à pessoa que ela ama. E qual a carência a ser preenchida? A necessidade de “salvar nosso amor”, diz-se em seguida.

Como “salvar nosso amor”? Aqui não se trata, longe disso, só do “amor que tenho”, trata-se isto sim do “nosso amor” – ou seja, de um amor recíproco, de um amor compartilhado pelos dois, tanto pela pessoa indicada pelo “me”, isto é, “eu”, como a pessoa indicada pelo “me ajude”, isto é, “você”. Ou seja: “Você e eu temos de salvar nosso amor”. E como é que se pode “salvar nosso amor”? Somente o exercendo. Mas aqui, ao contrário do que diz o título do conto-poema, não se trata apenas de “amor”, trata-se também, como diz o título do livro, de um “tropeço”: o fato de que a história termina em “ela implora” indica que a outra pessoa está recalcitrante, não quer “salvar o nosso amor”, ou hesita em fazer isso.

Será que o que foi dito convence a outra pessoa? A autora deixa isso em suspenso, e em suspense. Em todo caso, em que situação é que uma pessoa pode literalmente “tropeçar” na outra? Por meio do encontro de suas pernas com o corpo da outra pessoa, nos diria o senso comum. Sylvia Loeb está longe de se limitar ao senso comum: mais do que uma psicanálise, ela, como ficcionista, faz toda uma psicologia da espiritualidade, que é também corporal, de cada personagem. Seus contos são assim: flagrantes da eternidade, instantâneos que revelam toda uma vida.

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