31 de janeiro de 2011

Romance "Fogo Morto": considerações

Por encomenda do Diário do Comércio, fiz recentemente a seguinte resenha:

“Fogo Morto” está vivinho da silva




Renato Pompeu



Quase setenta anos após seu lançamento em 1943, o romance “Fogo Morto”, do paraibano José Lins do Rego (1901-1957), continua sendo uma das presenças mais poderosas da literatura brasileira, a rigor uma das poucas obras-primas produzidas pelas letras nacionais. E continua sendo de interesse permanente dos leitores, como prova o fato de a edição recém-lançada pela José Olympio ser a sua 68.a edição, ou seja, mais de uma edição por ano desde o lançamento.

Injustamente apontado nos livros didáticos e mesmo na crítica literária como “clássico do regionalismo nordestino”, esse romance sobre os decadentes engenhos do açúcar, que cediam o passo às usinas no começo do século 20, na verdade segue o conselho de alguém bem mais sábio do que os autores desses livros e dessas críticas, o grande escritor russo Lev Tolstoi: “Canta a tua aldeia e serás universal”.

Com efeito, “Fogo Morto” só pode ser considerado “regional” pelo etnocentrismo que julga ser o eixo Rio-São Paulo o umbigo do Brasil. Por que o simples fato de ter o Nordeste como tema torna um romance “regionalista” e não “universal”? Na verdade, o romance de Lins do Rego tem como tema a condição humana universal e eterna, encarnada nas suas eternas problemáticas do sexo, da morte e da loucura, particularizada, com emoção discreta, nas suas dimensões singulares de espaço geográfico e tempo.

A própria estrutura de “Fogo Morto” já apresenta a complexidade digna de uma obra clássica, ao entrelaçar três temáticas, a centrada no mestre seleiro José Amaro, que procura manter sua independência embora more e trabalhe dentro de um engenho; a que tem como personagem principal o senhor de engenho coronel Lula de Holanda, às voltas com a decadência de seu latifúndio tecnologicamente a cada dia mais defasado, e a que privilegia o aventureiro capitão Vitorino Papa-Rabo, um misto de Dom Quixote e de Sancho Pança que tem como cenário a lavoura do açúcar.

Aliás, a lavoura do açúcar é um cenário muito mais nobre, esteticamente, do que, por exemplo, a lavoura do café do Rio e de São Paulo, que nunca deu origem a uma obra-prima como esse romance de Lins do Rego. Afinal, Mário Donato, um escritor que não poderia ser mais genuinamente paulista, autor dos romances “Madrugada de Sangue” e “Presença de Anita”, defendeu com denodo a tese de que o açúcar, no Nordeste, de tradição secular, tinha realmente criado uma sociedade que podia ser pano de fundo para um romance que tem seus lados épicos, pois aquela sociedade, com suas classes e estamentos, tinha realmente criado uma rica cultura própria.

O mesmo, segundo Donato, não teria acontecido com a lavoura do café, comandada por arrivistas mais preocupados com as cotações em Londres do que com a vivência cotidiana na sociedade que não chegou a ser composta com seus escravos e depois com seus colonos, pois os proprietários passavam a maior parte do tempo em São Paulo e Santos, cuidando de seus negócios, do que nas fazendas. O que é mais “regional” ou mais “universal”? O romance “Sinhá Moça”, de Maria Dezzone Pacheco – ou o romance “A Carne”, de Júlio Ribeiro, duas obras bem paulistas, ou “Fogo Morto”? Sem dúvida, o autor paraibano leva a palma.

As grandes paixões, no sentido original da palavra, que indica sofrimento, como a Paixão de Cristo, do ser humano, o sexo, a morte e a loucura, é que são os verdadeiros temas centrais do romance de Lins do Rego. Essas instâncias vitais, esses elãs, essas vertigens que acompanham, ou melhor, perseguem os seres humanos desde eras imemoriais, aparecem encarnadas nos grandes verdes, até onde a vista alcança, do Nordeste açucareiro, com suas plantações de cana rodeadas pela mata, nos cheiros e gostos doces evocados pelo açúcar, nos calores das fervuras do melaço – e nas multidões de cores das peles e dos olhos mais claros e mais escuros dos diferentes personagens que povoam de vida, de muitas dores e de parcas alegrias, aquelas lonjuras verdejantes. Quem conhece “Fogo Morto” tem a oportunidade de fruí-lo novamente, com o compungido prazer cheio de solenidade que a obra desperta. Quem não conhece, tem a oportunidade de estar diante de uma experiência única e irrepetível, uma maravilha.

www.renatopompeu.blogspot.com

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