15 de maio de 2013

O filme de Orson Welles sobre a jangada cearense

A revista The President me encomendou a seguinte resenha: A épica viagem da jangada que foi do Ceará para o Rio - Renato Pompeu - Quando a diretora de The President, a jornalista Silvana Assumpção, me sugeriu que eu elaborasse um artigo a respeito da filmagem, pelo famoso diretor americano Orson Welles, tendo como tema a épica viagem de 1.650 milhas náuticas (2.381 quilômetros) que quatro jangadeiros fizeram a partir de setembro de 1941, entre Fortaleza e o Rio de Janeiro, eu imediatamente me lembrei de como essa viagem marcou a minha infância. Mas, antes de contar essa minha lembrança, devo registrar que a viagem durou 61 dias, numa simples jangada, chamada São Pedro, sem motor, sem nenhum instrumento de navegação, até mesmo sem lanternas, enfrentando tempestades e o terrível sol tropical em sua embarcação sem cobertura. A viagem, apesar de tudo, transcorreu sem problemas. Mas não a filmagem, pois, ao reconstituírem em março de 1942 a chegada ao Rio, diante das câmeras de Welles, os quatro tripulantes caíram ao mar – e um deles nunca retorno u. Voltando à minha lembrança. Enquanto eu falava com Silvana Assumpção, eu, que tenho 70 anos e que nasci em outubro de 1941, em meio à jornada dos quatro bravos navegantes, senti soar a meus ouvidos – os ouvidos, afinal, também têm memória – a voz do cantor Sílvio Caldas, entoando a canção “Jangada”, composta em homenagem ao feito desses jangadeiros, por Hervé Cordovil (autor de “Sabiá Lá na Gaiola”, revivida há poucos anos, na telenovela “A Favorita”, por Cláudia Raia e Patrícia Pillar), e Vicente Leporace (mais conhecido por seu programa de rádio “O Trabuco”, em que criticava o regime militar... durante o regime militar, e não depois dele, como fez a maioria). O colorido musical da canção crescia em meus ouvidos: Jangada Que enfuna a vela e desafia o mar E vai Levando um punhado de gente valente pro Sul As estrelas o rumo lhe dão E nas noites, se o céu é azul Essa gente valente, contente, se põe a cantar Jangada Quando voltares para o Ceará E lá Tua gente valente, contente, contar o que viu Vai dizer que o patrício do Sul Teus bravos heróis aplaudiu Jangada Que enfuna a vela e desafia o mar. E também me vieram à lembrança fotos da épica viagem que eu tinha visto na revista “O Cruzeiro”. Pelo menos, a lembrança musical e a lembrança visual me vieram quando recebi a encomenda do artigo. Mas, quando fui fazer a pesquisa a respeito do filme de Welles sobre a célebre viagem, vi que minha memória me tinha traído. A viagem ocorreu em 1941; o filme, que nunca foi exibido, foi rodado em 1942... e a canção foi gravada pela primeira vez pelo cantor Jimmy Lester (marido da cantora Carmélia Alves) em 1952 – e, por Sílvio Caldas, só em 1955. Isso tanto pode indicar que a viagem da jangada em 1941 foi um feito tão extraordinário que, uma década depois, ainda inspirava compositores consagrados, como pode estar relacionado ao fato de que outras viagens semelhantes foram realizadas nos anos seguintes – e, com toda a certeza, as fotos que me lembrei de ter visto em “O Cruzeiro” se referiam a outra viagem que não a de 1941, a não ser que eu tenha tido em mãos uma edição antiga da revista depois que aprendi a ler em 1945. Mas, se minha memória não foi correta, as emoções por ela despertadas não foram, de modo nenhum, desperdiçadas. O feito dos jangadeiros, comandados pelo mestre Manoel Olímpio Meira, mais conhecido como Jacaré, foi inegavelmente uma das grandes façanhas marítimas que tiveram participantes brasileiros. Jacaré era presidente da Colônia de Pesca Z-1 da Praia do Peixe de Fortaleza. Os outros três eram Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo). Muito pobres, moradores em palhoças, esses quatro jangadeiros queriam chamar a atenção nacional, mais exatamente do então presidente Getúlio Vargas, para as precárias condições em que viviam os 35 mil pescadores cearenses na época iguais a eles. Ou seja, jangadeiros que moravam em palhoças e que não eram objeto das atenções do então recém-fundado Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos – o IAPM, apesar de sua Colônia Z-1, à qual pertenciam 270 pescadores, ser filiada à Federação Estadual de Pescadores e à Confederação de Pescadores do Brasil. Eles partiram da Praia do Peixe (hoje a famosa Praia de Iracema), a 14 de setembro de 1941, sem ter a bordo nenhuma bússola e nenhuma carta de navegação; guiavam-se, como diz a canção, pelas estrelas, numa rota para eles totalmente desconhecida. Mas tinham diário de bordo que, sobre a partida, diz: “Às nove horas em ponto, quando soprava um bom nordeste, empurramos a jangada para dentro d’água. Ia começar a nossa aventura. O samburá estava cheio de coisas, a barrica cheia d’água, e os nossos corações cheios de esperança. Partimos debaixo de muitas palmas e consegui ver de longe os meus bichinhos acenando. Mais de vinte jangadas, trazendo os nossos irmãos de palhoça e de sofrimento, comboiaram a gente até a ponte do Mucuripe. A igreja branquinha foi sumindo e ficou por detrás do farol. Rezei para dentro uma oração pedindo que a Padroeira tomasse conta de nossos filhinhos, pois Deus velaria por nós. E assim começou a nossa viagem ao Rio de Janeiro...” Entre Maceió e a Bahia, segundo relatou o Mestre Jacaré numa entrevista, “pertinho da boca do São Francisco pegamos um temporal de arromba. A nossa roupinha de algodãozinho, pintada com tinta de cajueiro, começou a rasgar, pois o mar de um mês de viagem estragou o pano. Um jornalista de Maceió ficou com cara de bocó quando soube que não tínhamos bússolas nem cartas de navegação. A gente se guia pelas estrelas e deixa o vento fazer o resto. Também pertinho de São Salvador vimos cinco ou seis pintadinhos (ou seja, tubarões) à flor d’água, com as bocas abertas, prontos para engolir o primeiro cabra que aparecesse. Largamos eles de mão e continuamos a nossa viagem...” A jornada tão cheia de peripécias terminou a 16 de novembro, dia em que, depois de terem sido saudados entusiasticamente por uma multidão de cariocas, diante dos quais desfilaram em carro aberto, foram recebidos pelo presidente Vargas, no Palácio do Catete. Apesar dessa recepção triunfal, repetida dias depois em Fortaleza, para onde foram de avião, e de o presidente Vargas ter assinado um decreto-lei, em dezembro de 1941, assegurando aos jangadeiros o direito à aposentadoria, só muito mais tarde, nos anos 1970, é que todos os pescadores profissionais do País passaram a ter de fato direito à Previdência. Na verdade, lamento ter descoberto, na minha pesquisa, que a história da expedição não é tão bonita quanto parecia. Na época, os jangadeiros não eram donos de suas jangadas; entregavam metade da renda de suas pescarias aos donos das jangadas e a outra metade era dividida entre os quatro tripulantes da jangada. Os quatro heróis fizeram um movimento no Ceará anunciando que pretendiam denunciar a Federação Estadual de Pescadores por negligência na defesa dos interesses de seus filiados. Alguns donos de jangadas aderiram à denúncia e pagaram a construção da São Pedro para os jangadeiros irem ao Rio apresentar suas reivindicações. Foram saudados pela imprensa nacional, que, na medida em que os dias iam passando, os foi sucessivamente chamando de “heróis cearenses”, “heróis nordestinos” e “heróis brasileiros”. Entretanto, durante a viagem, nas suas paradas, eles descobriram que pescadores de outros Estados sofriam os mesmos problemas. Depois de voltarem a Fortaleza, passaram a denunciar os donos de jangadas como exploradores, inclusive alguns dos seus próprios patrocinadores. Então, os antigos “heróis” passaram a ser atacados pela imprensa. Particularmente o então jornalista Austregésilo de Athayde, depois presidente durante décadas da Academia Brasileira de Letras, passou nos Diários Associados de homenageá-los a escrever que nunca deveriam ter saído do Ceará. E, afinal, em pleno século 21, os pescadores artesanais ainda têm dificuldades em convencer os funcionários da Previdência de que têm direito por lei a receber aposentadoria, embora também por lei não estejam obrigados a contribuir para o INSS. Seguindo o que diz a Consolidação das Leis do Trabalho, eles apenas pagam a mensal idade à Colônia de Pescadores a que são filiados, mas, ao contrário do que prescreve a CLT, suas aposentadorias e pensões, auxílios-doença são rotineiramente recusadas pelos funcionários subalternos da Previdência, ignorantes da situação especial dos pescadores artesanais, que por sua vez também não sabem que podem recorrer a instâncias superiores mais bem informadas. Em algum momento Orson Welles entrou na história. A ligação do célebre diretor e ator com os quatro jangadeiros surgiu a partir da confluência de diferentes projetos. Em 1941 ele havia lançado sua obra-prima, um dos mais importantes filmes de todos os tempos e uma das mais admiradas obras de arte de toda a história humana, o filme “Cidadão Kane”, mas o filme, saudado desde o início pela crítica, só iria obter reconhecimento pelo público a partir dos anos 1960, e sua produtora, a RKO, já tinha, por volta de julho de 1941, desistido de esperar que “Cidadão Kane” desse lucro e o engavetou até já avançados os anos 1950. Procurando um novo caminho, Welles, também por volta de julho de 1941, estava empenhado num projeto “Panamericano”, que teria quatro partes: uma história do jazz, um romance entre um casal de italianos em São Francisco, uma tourada no México e uma expedição ao Ártico. Welles ficou empenhado no “Panamericano” nos meses seguintes. Mas, a 7 de dezembro de 1941, a Aviação japonesa atacou a base aeronaval americana em Pearl Harbor, no Havaí, o que levou os Estados Unidos a entrarem em seguida na Segunda Guerra Mundial. O governo americano iria precisar de todos os aliados que pudesse reunir e tinha um olho especial para a América Latina. Duas semanas depois do ataque a Pearl Harbor, o assessor do presidente Franklin Roosevelt para Assuntos Interamericanos, Nelson Rockefeller, da família bilionária dona da Exxon e futuro governador de Nova York, convidou Welles para fazer um filme de vários episódios sobre a América Latina. Welles trabalharia de graça, como sua contribuição para a Política de Boa Vizinhança tão necessária para o esforço de guerra de seu país. A RKO pagaria as despesas – afinal Rockefeller era um de seus maiores acionistas e fazia parte do conselho de diretores, e também assegurou que o governo dos Estados Unidos bancaria possíveis perdas que a RKO tivesse com o filme, até o valor, imenso na época, de 300 mil dólares. Welles viu aí uma possibilidade de completar pelo menos o episódio mexicano de seu projeto “Panamericano”. Aceitou a proposta de Rockefeller e, em fevereiro de 1942, já estava no Rio de Janeiro para filmar o Carnaval carioca, em cores e em branco e preto. Mas, a essa altura, o cineasta já havia lido um artigo no semanário “Time” de 8 de dezembro de 1941, intitulado “Quatro homens numa jangada”, escrito pelo correspondente da revista no Brasil sobre a épica viagem dos jangadeiros cearenses. Aos poucos foi se formando na mente de Welles o esboço do que seria o seu filme “É tudo verdade”, composto de três episódios – o primeiro, o velho projeto no México; o terceiro, o Carnaval do Rio – e, no meio, a atração principal: a filmagem de uma reconstituição da expedição da jangada São Pedro. Em março de 1942, Welles desembarcou em Fortaleza e comando u as filmagens locais. Em maio levou os jangadeiros e a São Pedro para o Rio, onde eles contracenaram em terra com o famoso ator Grande Otelo. Acostumados a dormir em suas choupanas, ou sobre os paus da jangada, os jangadeiros ficaram nada mais, nada menos, do que no Copacabana Palace Hotel, recebendo 500 mil-réis por semana. Em seguida, deveria ocorrer a filmagem da reconstituição da chegada dos jangadeiros à Barra da Tijuca, em novembro do ano anterior. Mas a lancha que rebocava a jangada com os quatro tripulantes, em meio ao mar revolto da Baía da Guanabara, fez uma manobra desastrada, virou, arrastou a jangada e os quatro jangadeiros caíram ao mar. Três retornaram, mas o Mestre Jacaré nunca mais foi visto com vida. Segundo fontes brasileiras, em especial cearenses, seu corpo nunca foi encontrado. Mas, segundo fontes americanas, sua cabeça e os braços meio devorados foram encontrados, uma semana depois, dentro de um tubarão de 220 quilos que havia sido capturado ao largo da Barra da Tijuca. Não pararam aí as agruras do filme, que continuou a ser rodado, com o Mestre Jacaré sendo substituído por seu irmão, Isidro. Durante o ano de 1942 várias mudanças ocorreram na RKO, inclusive a saída de Rockefeller do conselho. A nova direção não apreciava filmes que não dessem muito dinheiro, por mais prestígio que trouxessem, e, assim, não gostava de Welles. Além disso, Welles, vindo ao Brasil, tinha deixado de lado a edição de um projeto importante para o estúdio, o filme “The Magnificent Ambersons”. A nova RKO também achava exorbitantes os custos sempre em escalada de “É tudo verdade”, nome que o cineasta havia dado ao conjunto de três episódios sobre a América Latina. A direção da produtora, igualmente, ficou preocupada com a repercussão negativa da morte do Mestre Jacaré. Com isso, Welles teve o orçamento e a equipe drasticamente reduzidos, mal pôde completar “Quatro homens numa jangada” (dera ao episódio como nome o próprio título do artigo da “Time”). Ao voltar aos Estados Unidos, Welles foi demitido pela RKO. A produtora era legalmente a proprietária de “É tudo verdade”, ficou com os rolos já filmados e abandonou o projeto. Welles tentou, sem êxito, fazer com que outros estúdios bancassem o filme e chegou a comprar parte dos rolos, mas os devolveu à RKO, por não poder arcar com os custos de armazenamento e conservação. Eventualmente, funcionários da RKO, para aumentar a disponibilidade de espaço de seus depósitos, sumariamente jogaram ao fundo do Oceano Pacífico grande parte dos rolos. Welles disse numa entrevista que o filme havia sido amaldiçoado por um feitiço de vodu, nome haitiano pelo qual nos Estados Unidos é chamada a macumba. Ele contou que uma vez encontrou o roteiro todo perfurado, da primeira à última folha, por uma agulha bem comprida, à qual havia sido atada uma fita vermelha. Só em 1985 foram encontradas 300 latas com os rolos restantes. Eles foram aproveitados em dois documentários: um dirigido por Richard Wilson, assistente de Welles, e outro pelo diretor brasileiro Rogério Sganzerla. Tudo que resta, nos rolos, de tudo que foi filmado com a jangada e os jangadeiros, são 46 minutos de filme. Talvez se possa encerrar com palavras do próprio Welles, previstas para o fim do segmento dos jangadeiros: “Jacaré e os outros fizeram a viagem de jangada exatamente como é filmado aqui. Eles ficaram 61 dias em alto mar, sem bússola, e guiados apenas pelas estrelas...” Mas, com muita tristeza, devo encerrar com o que relata o escritor de romances policiais americano Leighton Gage, que tem muitas histórias passadas no Brasil, com o inspetor-c hefe Mário Silva. Gage escreveu, num blogue de escritores policiais, em http://murderiseverywhere.blogspot.com.br/2010/03/why-brazilians-hate-orson-welles.html, em inglês, que as jangadas tinham sido concebidas para as calmas águas costeiras, mas Welles queria mostrar como o convés da São Pedro seria varrido pelas águas e pelo vento num dia de tempestade em alto mar. Num dia de mar revolto ao largo do litoral do Rio, Welles achou que poderia filmar a cena que queria e convocou os pescadores. Conta Gage: “Jacaré hesitou , disse a ele (Welles) que era por demais perigoso. Welles lhe ofereceu mais dinheiro. De novo, Jacaré recusou. Então Welles lhe ofereceu ainda mais. O homem era um pescador pobre. A quantia que podia ganhar teria alimentado sua família durante um ano. Ele decidiu correr o risco. Eles mal haviam saído da proteção do ancoradouro quando foram atingidos por uma onda impressionante. Jacaré foi atirado fora do barco e desapareceu no mar revolto. Sua cabeça decomposta foi depois achada num grande tubarão capturado a poucas milhas ao largo da Barra da Tijuca.” A má repercussão do episódio na imprensa brasileira, segundo Gage, teria levado a RKO a reduzir drasticamente o orçamento e a equipe para o resto do filme. Furioso, Welles – sempre de acordo com Gage – passo u a quebrar e a jogar pela janela tudo que havia em sua suíte no Copacabana Palace. Não encontrei confirmações da versão de Gage, mas me senti na obrigação de relatá-la, como epitáfio da história. Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio “O mundo como obra de arte criada pelo Brasil”, Editora Casa Amarela.

2 comentários:

Beto Kaos Z Deja-vu disse...

Poxa. Nenhum equipamento de segurança para este pobre pescador. Que absurdo.

Beto Kaos Z Deja-vu disse...

Nobres pescadores excluídos e discriminados.
Um feito fabuloso que já deveria ter virado filme aqui no nosso noveleiro Brasil.