30 de outubro de 2013
Até que ponto Edward Said conhecia o Oriente?
Do Diário do Comércio de São Paulo
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Edward Said e o imperialismo
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Renato Pompeu
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Faz oito anos que morreu o intelectual palestino radicado nos Estados Unidos, Edward Said. E faz dezoito anos que ele publicou, aos 58 anos, “Cultura e imperialismo”, em 1993, agora lançado em edição brasileira pela Companhia de Bolso. O livro pode ser considerado uma sequência de seu famoso “Orientalismo”, de 1978, quando o autor tinha 43 anos. Em “Orientalismo”, ele havia denunciado a falsa visão que, segundo ele, os especialistas ocidentais tinham criado a respeito do Oriente. Em “Cultura e Imperialismo”, discutindo obras de arte ocidental em geral, dos séculos 19 e 20, sobre temas do Oriente ou sobre o imperialismo, ele debate como o colonialismo e o imperialismo usaram a cultura para controlar os povos dominados e como a resistência ao colonialismo e ao imperialismo, afinal de contas, influenciaram, por sua vez, as letras inglesas e francesas e as artes ocidentais como um todo.
Estudando escritores como os ingleses Jane Austen e Rudyard Kipling, o polonês radicado na Inglaterra Joseph Conrad e compositores como o italiano Giuseppe Verdi, Said, em “Cultura e imperialismo” de um lado apresenta o contexto cultural dos colonizadores e, de outro, o contexto dos colonizados. Numa outra vertente, ele estuda tanto o que as descrições ocidentais visualizaram do Oriente, de forma correta ou distorcida, como também o que essas descrições omitiram das realidades orientais.
Na verdade, ele considera que a emergência do gênero romance, nas literaturas inglesa, francesa e americana, esteve, a partir do século 18, estreitamente ligada à emergência do próprio imperialismo. Said chega a dizer que o padrão clássico do romance nessas literaturas seria como que uma “criação” dos impérios britânico, francês e americano. A ideologia do colonialismo e do imperialismo seriam a mesma ideologia do romance. Isso fica particularmente claro, para ele, já em “Mansfield Park”, romance de Jane Austen, da passagem do século 18 para o século 19.
Mansfield Park, a suntuosa mansão em que se passa todo o romance, era de propriedade de sir Thomas Bertram, que tinha ficado rico numa propriedade escravista da ilha de Antígua, no Caribe. Jane Austen dá a entender que todo o luxo e todo o requinte de Mansfield Park eram sustentados pelo braço dos escravos. Outro livro que Said analisa é “No coração das trevas”, do polonês radicado na Inglaterra Joseph Conrad e que foi a principal inspiração do filme “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola. No livro, se trata de um aventureiro ocidental que se apossa de um território às margens de um grande rio africano e chega a ter “súditos”, sobre os quais exerce um reino de terror. Também o autor discute a ópera “Aída”, de Verdi e o modo como ela retrata o Egito.
A grande preocupação de Said é com o “outro”. A cultura colonialista e a cultura imperialista são para ele ao mesmo tempo um comentário e uma distorção a respeito do colonizado e do dominado. Aqui é preciso insistir em que Said deixa bem claro que o valor cultural das obras que discute, de autores como o irlandês Yeats e o americano Ernst Hemingway, não fica de modo nenhum diminuído pelo fato de serem vistas como refletindo a visão colonialista e imperialista a respeito do “outro”. Pelo contrário, segundo ele, a compreensão e a fruição dessas obras de arte são extremamente enriquecidas pela sua visão como partes de uma cultura colonialista e imperialista, pois, afinal, a cultura colonialista e imperialista e a reação a ela das culturas colonizadas e dominadas foram as primeiras manifestações de uma cultura em escala planetária, da primeira cultura globalizada.
Outro ponto é que Said, em “Cultura e imperialismo”, chega até a era contemporânea. Mais exatamente, o último capítulo se refere à primeira guerra contra o Iraque por parte dos Estados Unidos, no começo dos anos 1990. O que se pode dizer é que o livro engloba as duas disciplinas de que ele foi o inaugurador em todo o mundo: de um lado, os estudos culturais; de outro lado, os estudos pós-coloniais. Além desse traço de pós-colonialismo, a grande novidade de “Cultura e imperialismo”, em relação a “Orientalismo” são os ensaios sobre literatura comparada em particular e cultura comparada em geral.
No entanto, fica uma dúvida: até que ponto Said realmente conhecia esses “outros” do colonialismo e do imperialismo? Ele nasceu filho de um palestino e uma libanesa, ambos protestantes, em Jerusalém em 1935 e pouco depois a família, de alta classe média, mudou-se para o Cairo. Tanto em Jerusalém como no Cairo ele estudou exclusivamente em escolas ocidentais. Seu pai tinha sido oficial do Exército britânico na Primeira Guerra Mundial. Said era tão ocidentalizado que até mesmo se tornou um virtuose do piano, dedicando-se às obras clássicas ocidentais. Aos 16 anos, já era radicado nos Estados Unidos.
O protestantismo, no Oriente Médio, se desenvolveu a partir de meados do século 19. Said assim teve pouca convivência com o catolicismo ortodoxo e o catolicismo romano milenares na Palestina e, acima de tudo, teve pouca familiaridade com o islamismo predominante há mais de mil anos no Oriente Médio. Isso sem falar dos outros Orientes, como a China, a Índia, o Japão, a África Negra e a América Latina. É como se ele criticasse a cultura ocidental a partir do interior da própria cultura ocidental.
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