27 de outubro de 2013

A saga dos carcereiros

Da revista Carta Capital - É tudo verdade - As palavras de Drauzio Varella são sóbrias e sua linguagem é coloquial, neste “Carcereiros”, segundo volume de uma trilogia que começou com “Estação Carandiru” e ainda vai ser completada com “Prisioneiras”. Mas as descrições de ações como o puxar a rodo o sangue derramado no Massacre do Carandiru e depois ir espairecer num boteco do outro lado da rua são como pedras pontiagudas que nos dão a sensação de rasgar a nossa pele. A força dessas narrativas do cotidiano de cidadãos muitas vezes honestos e pacatos que na juventude viram na função de carcereiro a oportunidade de uma carreira com as seguranças do serviço público e que passaram a viver num inferno que, para parafrasear o escritor francês Honoré de Balzac, ao contrário do Inferno de Dante, não tem nem mesmo um Virgílio para guiar o neófito, advém de que é tudo verdade, menos alguns nomes fictícios. Em “Estação Carandiru”, que virou filme de Héctor Babenco, Varella havia explorado o mundo surreal dos presos do já desaparecido Complexo Carcerário do mesmo nome; em “Prisioneiras”, vai lidar com as detentas da Penitenciária Feminina. Nessas duas instituições, ele atuou como médico voluntário durante cerca de duas décadas, e conheceu de perto tanto homens como mulheres que transgrediram as leis, mais duras com os de baixo do que com os de cima. Mas, na obra ora lançada, intermediária, Dráuzio Varella trata de seres talvez mais estigmatizados do que os prisioneiros, os carcereiros, com os quais conviveu tanto dentro como fora das masmorras, em conversas de botequim. Ele desconstrói a imagem comumente difundida dos carcereiros como homens truculentos, arbitrários e desalmados. Esses seres humanos nos aparecem como realmente são: como seres humanos que estão eternamente, nas horas de serviço, em situações-limite. Não são particularmente violentos, mesmo porque andam normalmente desarmados – suas únicas armas, em geral, são os molhos de chaves que portam –, em meio a criminosos que, com uma frequência maior do que se imagina, portam facas, improvisadas ou não, embora estejam presos. Os carcereiros, que fora da cadeia podem estar cultivando flores, ou levando o filho ao hospital, estão sempre enfrentando desafios que para todos nós seriam cruciais: como reagir a uma oferta de suborno, como intervir numa briga de faca, como evitar que um soldado se vingue a tiros de um detento do qual tem más lembranças da rua. O doutor resgata a humanidade desses seres desprezados pela sociedade a que servem e que estão sempre “en situation”, como dizia o falecido pensador francês Jean Paul Sartre. – RENATO POMPEU

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