19 de novembro de 2013

Os autores que me formaram

Para a revista Metáfora - Ensaio - Das letrinhas para a vida: os autores que me formaram como pessoa, como jornalista e como escritor - Renato Pompeu - Normalmente, quando um escritor fala dos livros e autores que mais o influenciaram, ele se está referindo aos que mais o marcaram propriamente como escritor, e é nesse sentido que nas escolas, por exemplo, os professores falam das “influências” na carreira de um autor. Mas o que quero primeiro aqui é falar dos autores, ou melhor, dos trechos, que marcaram propriamente a minha formação como pessoa, a minha visão do mundo, não o meu estilo ou a minha temática como ficcionista. Desse ponto-de-vista, o autor que mais me influenciou foi um monge japonês do século 12, Kamo no Chomei, autor de um livrinho de apenas 20 páginas, “A cabana dos dez pés quadrados” (ou seja, três metros quadrados), um ensaio autobiográfico. O trecho que me marcou profundamente, já no fim do livro e da vida de Chomei, diz: “Agora, a lua da minha vida mergulha no céu e está próxima da beira da montanha. Em breve devo rumar para a escuridão dos Três Caminhos: por que então eu me preocuparia comigo mesmo? A essência do ensinamento do Buda ao ser humano é de que não devemos ter apego a nenhum objeto. É agora para mim um pecado amar minha pequena cabana e minha ligação à sua solidão pode ser também um obstáculo para a salvação. Por que eu deveria perder mais tempo precioso em relatar prazeres tão mesquinhos?” Para bem entender esse trecho, é preciso levar em conta que Chomei, filho de um sacerdote xintoísta, revelou desde a infância grande talento como poeta e isso lhe abriu caminho para uma vida de luxo, ociosidade e prazeres carnais na corte do imperador. Aos 50 anos de idade, no entanto, ele se converteu ao budismo e resolveu se desapegar das coisas deste mundo. Transferiu-se para uma montanha, em meio a uma remota floresta, e, num lugar isolado, construiu com as próprias mãos uma pequena cabana de um cômodo só, cujos únicos móveis eram uma esteira para dormir e uma escrivaninha para escrever, além de ganchos para pendurar uma viola e uma guitarra. Em volta da cabana, plantou uma horta e, além disso, comia os frutos da floresta. Raramente via alguém. Meditava, escrevia, tocava música. Passou vinte anos assim e, no começo, achava que tinha efetivamente conseguido se desapegar das coisas do mundo, para só viver na espiritualidade. No entanto, como mostra a conclusão acima, ele foi aos poucos percebendo que não tinha conseguido se desapegar das coisas materiais. Afinal, ele se deu conta de que amava... a cabana, a esteira, a escrivaninha, a guitarra, a viola, a horta! Portanto, à luz da doutrina do Buda, ele era... um pecador, tanto quanto era antes quando vivia no luxo, na ociosidade e desfrutando dos prazeres da carne! Sua vida, afinal, era um fracasso! Sabendo disso, agora podemos reler o texto dele acima e meditar. (Outros trechos de seu livro, em inglês, podem ser vistos em http://www.yc.tcu.ac.jp/~kiyou/no5/P114-120.pdf). Que lição preciosa de vida! Todos tendemos a imaginar algum significado glorioso para a nossa vida, no entanto temos de ter humildade para reconhecer que nunca alcançamos a perfeição a que almejamos. Outro autor que influenciou a minha visão do mundo foi Ivo Andric (1892-1975), da antiga Iugoslávia, croata da Bósnia que escreveu em sérvio, vencedor do Prêmio Nobel de 1961. Diplomata do antigo Reino da Iugoslávia, por se opor ao fascismo vitorioso em seu país, na passagem dos anos 1930 para os anos 1940, ficou praticamente confinado à sua casa em Belgrado durante a Segunda Guerra Mundial, período em que escreveu sua obra-prima, o romance “A ponte sobre o Drina” (1945). O Drina é um rio da antiga Iugoslávia e essa ponte, realmente existente, inaugurada em 1566, foi destruída na Primeira Guerra Mundial. Era situada na cidade bósnia de Visegrad, perto de Sarajevo; Andric passou a infância em Visegrad, cenário de quase todas as suas obras. A frase que marcou a minha vida é: Agora voltemos aos tempos em que essa ponte não era nem mesmo um sonho. Para entender essa frase, notemos que o livro é cheio de sutilezas. A história se passa toda durante o domínio otomano sobre a Bósnia e a narrativa nunca sai da ponte, ao longo de três séculos e meio: são diferentes episódios sobre personagens que passam pela ponte, param nela ou no caravançará a ela anexo. Na verdade, o livro, em sérvio, se chama “Sobre o Drina, a ponte”, ou, mais exatamente, “Na Drini, çuprija”. Em sérvio existem duas palavras para “ponte”, uma é “mesto”, uma palavra eslava castiça; a outra é “çuprija”, de origem turca. O fato de o título do romance ter uma vírgula separando palavras eslavas de uma palavra turca é intencional: a vírgula, como a Bósnia, ao mesmo tempo separa e une o Ocidente e o Oriente, ao mesmo tempo em que a vírgula é uma “ponte”. Lendo-se com cuidado, Andric, além de grande prosador, é um grande poeta; suas palavras e frases, além de denotarem realidades, também conotam emoções e valores. Ele narra como, durante o Império otomano, crianças cristãs eram sequestradas de seus pais e de suas mães e eram educadas como muçulmanas. Baseando-se em fatos reais, Andric narra como um menino cristão que mal aprendeu a falar foi arrancado dos braços de sua mãe e foi levado por seus sequestradores muçulmanos numa travessia de barco, passando assim o Drina na altura de Visegrad e iniciando sua vida de islamita. Muitos anos depois, já sexagenário e tornado grão-vizir (primeiro-ministro) do Império turco, ele se lembra, ao atravessar novamente o Drina no mesmo ponto, que sempre sentia “uma súbita dor no coração” quando passava por ali, lembrando-se inconscientemente de que fora ali separado da mãe. Então ele decide mandar construir uma ponte naquela passagem do rio. A ponte, criada por um arquiteto e mestre-de-obras italiano, é uma obra de arte, toda esculpida. Depois de Andric descrever toda a beleza e toda a imponência da ponte sobre o Drina, é que ele escreve a frase acima. A leitura dessa frase me fez me sentir iluminado por uma revelação: todas as obras humanas que vemos não existiram desde sempre. Houve um tempo em que não existiam sequer como sonho ou projeto, depois passaram pela fase de sonho, finalmente se concretizaram... e estão destinadas a desaparecer. É triste saber que tudo acaba, mas me sinto feliz em saber que alguns sonhos se cumprem. Agora, pode haver, para os leitores da Metáfora, também interesse em saber que livros me influenciaram como jornalista. Quando me iniciei como jornalista, nos anos 1960, a linguagem jornalística era um tanto empolada e não se podia repetir palavra. Assim, se no texto já houvesse sido mencionado um “hospital” ou um “cemitério”, na próxima vez se tinha de falar em “nosocômio”, no primeiro caso, e “necrópole”, no segundo. Não se podia falar em “câncer”, se dizia “insidiosa moléstia”. Em reação a isso, minha geração – não se esqueçam de que eram os famosos anos 1960 – partiu para um jornalismo mais literário, chamado na época de “novo jornalismo”. Nossos modelos eram principalmente dois escritores americanos, mais exatamente um livro de cada um deles. Um livro era “A sangue frio”, uma reportagem escrita como se fosse um romance, do escritor e jornalista Truman Capote, em que ele descrevia com detalhes uma chacina realmente ocorrida, em que toda uma família havia sido assassinada. (Além do livro, recomendo também o filme “Capote”). O outro livro era um romance escrito como se fosse uma reportagem, “O velho e o mar”, do escritor, jornalista e combatente republicano na Guerra Civil Espanhola, que ganhou o Nobel, Ernest Hemingway. É a história de um idoso pescador cubano que pesca um grande peixe em alto mar e o vai arrastando rumo à terra, enquanto tubarões vão devorando o grande peixe que ele apanhou. Os dois livros tinham em comum o fato de serem escritos em uma linguagem empolgante; a gente não “lia” como os personagens agiam, a gente os “via” agindo, tal o caráter dinâmico, veloz e extremamente descritivo, ao mesmo tempo evocativo, dos dois textos. Foi um momento em que o jornalismo brasileiro teve ambições literárias maiores, cujo exemplo maior foi a até hoje célebre fase inicial da revista “Realidade” (onde por sinal não trabalhei), até hoje, meio século depois, um parâmetro muito importante para o jornalismo, para os jornalistas, e para os leitores. Pode haver interesse também em saber quais livros foram importantes para mim como escritor, livros que influenciaram os meus estilos e as minhas temáticas como ficção. Lembro de particularmente três escritores que me marcaram, dois mais famosos e um menos conhecido: o brasileiro do século 19 Machado de Assis, o alemão do século 20 Thomas Mann e o húngaro, também do século 20, Odon Horvath. De Machado me marcou particularmente a volubilidade que ele demonstra, particularmente, no romance “Dom Casmurro”, ele vai mudando de um assunto para outro, amenamente, agradavelmente, alegremente, fazendo a gente desejar participar da felicidade criativa, do gozo de que ele desfrutava ao escrever tão voluptuosamente. Já Thomas Mann, no romance “A Montanha Mágica”, me impressionou como ele leva centenas de páginas descrevendo um mundo encantado e cheio de enlevo em que tantas pessoas viviam, tão entusiasmadas, tão felizes – para no fim, em poucas palavras, em rápidas chicotadas verbais, destruir aquela beleza tão maravilhosa. Finalmente, Horvath, na novela “Juventude sem Deus”, sobre os inícios do nazismo na Áustria, me marcou pela importância dada ao futebol, já nos anos 1920. Me lembro particularmente de um seu personagem, um goleiro que narra passagens de sua vida, em especial seus jogos na Ilha de Malta, onde, segundo ele conta, os campos eram de pedra, de rocha nua, pois a ilha não tinha gramados ou mesmo árvores, tão seca e tão rochosa que era. Eu ficava pensando no goleiro esgarçando seu corpo inteiro na pequena área pedregosa, para pegar uma bola rasteira... Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio “O mundo como obra de arte criada pelo Brasil”, Editora Casa Amarela.

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