O Diário de S. Paulo publicou hoje uma versão modificada do seguinte artigo meu:
Líbia, território milenar,
nação ainda inexistente
Renato Pompeu
especial para o Diário
Os antigos egípcios deram o nome de Líbia aos desertos a oeste de seu país, mas esse nome logo caiu em desuso, pois já nos primeiros tempos históricos o território que hoje é da Líbia era dividido em três partes que levaram vidas independentes durante a maior parte dos últimos séculos: a Tripolitânia no litoral oeste, a Cirenaica no litoral leste, o Fezzan desértico no sudoeste.
A Tripolitânia foi originalmente uma colônia fenícia, a partir do século 7.o a.C. Em seguida, foi ocupada pelos herdeiros dos fenícios, os cartagineses, e, mais tarde, pela Numídia. Depois, pelos romanos, a partir de 46 a.C.; pelos vândalos, em 435, pelos árabes no século 7.o e pelos turcos otomanos no século 16, quando só então foi reunida à Cirenaica (o Fezzan só foi incorporado pelo Império Otomano já no século 19). No entanto, num período nos séculos 18 e 19 a Tripolitânia se tornou um país independente, que vivia largamente da pirataria e foi atacado pelos Estados Unidos em 1801-1805. Em 1835, voltou ao domínio otomano, de novo reunida à Cirenaica. Na Tripolitânia fica Trípoli, a capital da Líbia e principal reduto de Gaddafi.
Já a Cirenaica, na mesma época, o século 7.o a.C., em que a Tripolitânia foi colonizada pelos fenícios, foi colonizada pelos gregos, nunca esteve dominada por fenícios, cartagineses, númidas ou vândalos, e durante a sua ocupação pelos romanos, a partir do século 1.o a.C.. e pelos árabes no século 7.o, nunca esteve unida administrativa ou politicamente à Tripolitânia, até a ocupação de ambas pelos otomanos no século 16.. Também não passou, ao contrário da Tripolitânia, uma fase como país independente. Na Cirenaica, fica Benghazi, o principal reduto anti-Gaddafi.
Já o Fezzan, habitado imemorialmente por tribos berberes, só entrou na História no século 1.o a.C., quando foi ocupado pelos romanos, sucedidos igualmente pelos árabes no século 7.o. Os otomanos só chegaram no século 19, nos anos 1840, quando o Fezzan foi reunido numa unidade administrativa com a Tripolitânia e a Cirenaica.
A partir de 1911 a Itália derrotou o Império Otomano e ocupou as três regiões, a que, nos anos 1930, deu de novo o nome de Líbia, Durante a Segunda Guerra Mundial, tropas italianas e alemãs foram derrotadas por tropas britânicas e francesas. Após o fim da guerra, a Líbia esteve sob mandato anglofrancês até 1951, quando se tornou independente. Sem maiores recursos, por ser desértico, o novo país foi sustentado por subsídios ocidentais, em troca da permanência ali de tropas britânicas, que só saíram em 1966. A partir de 1958, quando foi descoberto o petróleo, é que a Líbia passou a prescindir cada vez mais da ajuda estrangeira.
Se a história do território líbio é assim conturbada, a de seu povo é ainda mais intricada. Dos fenícios aos italianos, todos os ocupantes estrangeiros deixaram sua marca, sem contar os judeus, que sempre foram uma presença significativa, até abandonarem o país em massa, rumo a Israel, já durante o início do governo de Gaddafi, a partir de 1969. As tribos berberes originais continuaram majoritárias no Fezzan, e não tiveram maior participação nos últimos acontecimentos. Mas, a partir do século 7.o, e com maior intensidade nos séculos 9.o e 10.o, a Tripolitânia e a Cirenaica foram sucessivamente invadidas e ocupadas majoritariamente por dezenas de tribos árabes, que se mantêm até hoje.
Secularmente, essas tribos tomavam conta dos raros poços d’água no imenso país desértico (com quase 2 milhões de quilômetros quadrados, a Líbia só tem cerca de 6 milhões de habitantes, dos quais um quarto de imigrantes africanos que também, a não ser pela fuga em massa, não tiveram maior participação nos últimos acontecimentos) e dos caminhos das caravanas. Criavam gado e tentavam a agricultura onde dava, como fazem até hoje os berberes, mas as tribos árabes migraram em massa rumo à costa após a descoberta do petróleo. Calcula-se que sejam 140 essas tribos árabes; as da Cirenaica controlaram a monarquia enquanto esta durou, de 1951 a 1969, e o próprio Gaddafi é oriundo de uma pequena tribo do mesmo nome, da Tripolitânia, e foi como cabeça das tribos da Tripolitânia que ele derrubou a monarquia. Esse mapa se repete agora ao contrário, com a rebelião tendo sido liderada pelas principais tribos da Cirenaica, em especial os Werfalla, a maior tribo da Líbia, com perto de um milhão de integrantes.
Cumpre notar que Gaddafi tentou substituir as estruturas tribais por “conselhos populares” ao estilo de Cuba, mas a partir de 1993 concedeu aos chefes de tribos poderes para distribuírem financiamentos para a casa própria, vagas nas escolas, e empregos. Só não lhes devolveu os poderes militares e policiais, que continuaram unificados sob o comando de Gaddafi, o que explica a inépcia militar dos rebeldes, com representantes de várias tribos da Cirenaica tendo pedido a intervenção estrangeira, agora concretizada.
Do ponto de vista político, as principais tribos são:
Gaddafi – A tribo de Gaddafi, pequena em número de pessoas, veio nas últimas décadas do deserto para a região do porto de Sirta, no extremo leste da Tripolitânia, perto da Cirenaica; a cidade fica a meio caminho entre Trípoli, a capital da Tripolitânia e do país e reduto de Gaddafi, e Benghazi, a capital da Cirenaica, reduto rebelde. Os Gaddafi formam o núcleo das chamadas Unidades de Proteção do Regime e também fornecem a maioria dos pilotos da Força Aérea. São prósperos e acusados por membros de outras tribos de enriquecimento ilícito.
Werfalla – A maior tribo da Líbia, com perto de um milhão de integrantes. Sua cidade principal é Misrata, na Cirenaica, a terceira cidade da Líbia, mas sua área chega às vizinhanças de Sirta. Membros seus tentaram um golpe contra Gaddafi em 1993 (na mesma época em que Gaddafi redistribuiu o poder dos conselhos populares para as tribos); os chefes foram presos e executados. Os Werfalla formam o maior grupo rebelde.
Margaha – A segunda maior tribo do país, agrupada na Tripolitânia, sua liderança apoiava Gaddafi, mas ele a afastou do poder no fim dos anos 1980. Com isso, os Margaha apoiaram a tentativa de golpe dos Werfalla em 1993 e agora foram das poucas tribos da Tripolitânia que aderiram à revolta.
Barasa – Embora seja da Cirenaica, essa tribo não tomou partido na crise atual, talvez pelo fato de a segunda mulher de Gaddafi ser integrante dos Barasa. Eles ficam mais no interior desértico, dominando campos de petróleo, do que na costa. Alguns filhos de Gaddafi são ligados a essa tribo.
Zuwwaya – Da Cirenaica, controlam regiões petrolíferas e se opuseram a Gaddafi.
Misrata – Segunda maior tribo da Cirenaica, depois dos Werfalla, seus membros se estabeleceram em Benghazi, segunda maior cidade da Líbia e principal centro urbano anti-Gaddafi.
Taruna – Da Tripolitânia, forma boa parte da população de Trípoli, reduto de Gaddafi. Mesmo assim alguns de seus integrantes apoiaram os rebeldes; a maioria continuou seguindo Gaddafi.
Zentan – Localizada no extremo oeste da Tripolitânia, na fronteira da Líbia com a Tunísia, sua grande maioria continuou seguindo Gaddafi.
Tuaregues – Ao contrário das anteriores, essas tribos não são árabes e sim berberes, os habitantes originais da Líbia. Se espalham por vários países da região e não reconhecem, nômades que são, as fronteiras nacionais. Embora tenham participado de revoltas em outros países, na Líbia, onde se concentram no Fezzan, tendem a apoiar Gaddafi, suspeito de armá-los para criar problemas além-fronteiras.
3 comentários:
Excelente.
Quais foram suas fontes?
Prezada Karoline, foram o www.answers.com sobre a história da Líbia e a agência Reuters sobre as tribos.
Para ler/interpretar/entender, precisamos de pessoas como senhor- O velho LIDIO, quem, o que, por que,como, quando. Obrigado "Mestre".
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