13 de setembro de 2011

Mais marxista do que Marx


Recentemente o Diário do Comércio publicou o seguinte artigo de minha autoria

A audácia de Kurz
Renato Pompeu
Eis que surge, em pleno século 21, alguém mais marxista do que Karl Marx. Trata-se do pensador alemão Robert Kurz, famoso por suas análises segundo as quais o chamado socialismo real era na verdade um modo de produção pré-capitalista, do qual acaba de ser lançado no Brasil, pela Hedra, o livro “Razão sangrenta – ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e de seus valores ocidentais”. Nesses textos, publicados originalmente em revistas alemãs, Kurz tenta desancar todos os princípios do Iluminismo (a tradução preferiu a forma Esclarecimento) em particular e da filosofia ocidental em geral, como se fossem justificações ideológicas da exclusão social e da violência que ocorrem na sociedade contemporânea.
Marx, que na verdade era herdeiro do Iluminismo, cujos valores de liberdade, igualdade e fraternidade queria estender para todos os seres humanos, embora os seus seguidores tenham fundado regimes que não obedeciam a esses princípios, talvez se mostrasse surpreso e até mesmo assombrado com as conclusões de Kurz. Pode ser que seja exatamente devido a isso que, por defender essas ideias anti-iluministas,  Kurz foi excluído de revistas alemãs derivadas do marxismo que ele próprio havia ajudado a fundar.
Lembremos que Marx havia postulado que o valor de cada mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. É uma formulação complicada, porque esse “socialmente necessário” implica que não se trata do tempo de trabalho que a mercadoria efetivamente precisou para ser produzida, e sim de um cálculo abstrato do tempo teoricamente necessário, nas condições tecnológicas vigentes, para produzi-la.
Assim, Marx fala em “valor abstrato”. Segundo Kurz, esse valor abstrato não determina apenas o valor pelo qual cada mercadoria deve ser comprada e vendida, mas determina todas as condições de vida dos seres humanos que vivem sob o capitalismo ou são por ele afetados. Kurz postula, mais do que demonstra, que esse valor abstrato é que é chamado de Razão pelos filósofos iluministas, como Kant, ou de Espírito, pelo filósofo Hegel. Se trataria, para Kurz, do princípio que rege toda a vida contemporânea e que assegura os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade – ele nota que não está assegurado o direito à felicidade, mas só à sua busca – a apenas uma parte da humanidade, excluindo uma parcela significativa dos seres humanos, aos quais a Razão ocidental não garante nem a vida, nem a liberdade, nem a busca da felicidade.
Isso explicaria por que Kurz escolheu para seus textos o título de “Razão sangrenta”: para ele, os direitos individuais, na sociedade contemporânea, estão assegurados apenas na medida em que cada pessoa tem meios para comprar e/ou vender bens e serviços, chega a dar a entender que as pessoas que não têm esses meios estão condenadas ou a morrerem de fome, ou a serem bombardeadas pela Otan. Ele também opina, igualmente sem provar, que o capitalismo inclui uns, mas forçosamente exclui outros, ao contrário da maioria dos estudiosos, que acham que justamente a luta pela emancipação é a luta pela extensão do capitalismo moderno e da democracia para todo o planeta.
Kurz vai além e defende, sempre sem provar, que as dificuldades que as mulheres e as pessoas de etnias não-brancas enfrentam no mundo contemporâneo advêm justamente das condições de vida sacramentadas pelo valor abstrato, ou, em outras palavras, pela Razão ocidental, que na sua opinião consagram apenas o modo de vida dos seres humanos brancos de sexo masculino que tenham alcance ao dinheiro.
Ele diz ainda que as próprias lutas de classes e as concepções de militar em defesa das classes trabalhadoras fazem parte desse jogo de inclusão de uns e de exclusão de outros, jogo comandado pelo valor abstrato, ou pela Razão ocidental. Talvez Kurz esteja querendo dizer que, na medida em que se luta pela defesa das classes trabalhadoras, isso representa reforçar a sobrevivência da sociedade de classes.
A grande dificuldade das postulações de Kurz reside em que, nelas, o tempo histórico e as situações históricas concretas não são levadas em conta. Para ele, desde que o capitalismo existe, o capitalismo sempre teria sido igual e continuaria sendo igual a si mesmo. Isto é, Kurz ignora o avanço dos direitos, inclusive das mulheres e dos não-brancos, que ocorreram desde o século 18 até agora.

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