28 de dezembro de 2013

O K. de Kucinski

Da revista Retrato do Brasil - O K. de Kucinski - Renato Pompeu - Em seu primeiro livro de ficção, o romance “K.”, publicado pela Expressão Popular, o jornalista Bernardo Kucinski, 74 anos, surpreende pelo vigor da narrativa e já surge como um clássico do registro do ambiente opressivo do regime militar. Ele tratou de romancear a saga de sua irmã Ana Rosa Kucinski, professora de Química na USP, desaparecida, com seu marido Wilson Silva, físico especializado em computação, durante o auge da repressão, a partir do dia 22 de abril de 1974, e a odisseia de seu pai para localizar a filha. A par de ser uma obra de arte com requintes kafkianos – o leitor se envolve percorrendo um labirinto de situações absurdas e incompreensíveis, que recriam o clima grotesco sob o qual se vivia no regime militar – Kucinski nos oferece aqui um retrato muito bem documentado, pois muitos dos fatos que relata, possivelmente a maior parte deles, são fatos verdadeiros, realmente acontecidos, narrados com toda a fidelidade pelo autor. Por exemplo, fala-se de ações ilegais e mesmo de sessões de tortura que realmente aconteceram, e de agentes reais da repressão, como o delegado Sérgio Fleury e o médico Amílcar Lobo. A história é vista sob o ponto-de-vista de K., personagem baseado no pai de Ana Rosa e de Bernardo, Majer Kucinski. Quando começa a ação do livro, ele se dá conta de que a filha, que há anos tinha saído de casa e era professora de Química na USP, não dava notícias há dias. Ele a procura nos hospitais, no Instituto Médico-Legal, nas delegacias e centros de detenção; por meio de contatos com pessoas amigas e colegas dela, K. descobre surpreso que a filha era casada de papel passado com Wilson Silva. Como judeu que era livre-pensador, K. achou que sua filha não teria problemas em contar a ele que se casara com um não-judeu e ficou intrigado com os motivos pelos quais ela não lhe tinha revelado o matrimônio. Pouco a pouco ele vai descobrindo que a filha era militante da luta armada contra o regime militar, e que o seu genro era um alto dirigente da organização de que ambos participavam. K. começa a se sentir culpado, por não conhecer bem, afinal, a própria filha. Ele achava que, de alguma forma, ele a fizera se sentir distante do pai, e agora K. pensava tristemente que, se o relacionamento com a filha fosse mais aberto, ele poderia tê-la ajudado, pois ele próprio tinha experiência da luta clandestina contra o antissemitismo em sua Polônia natal. Paralelamente, enquanto fica assim sabendo de coisas da filha de que jamais tinha cogitado, K. vive um pesadelo literalmente kafkiano ao procurar localizá-la. De vez em quando, alguém ligado às autoridades da repressão revelava que a filha tinha de fato sido presa a 22 de abril de 1974, mas dias depois cada informante, muito nervoso e assustado, dizia que tinha havido um “engano”, pois a filha, na verdade, “não tinha sido presa”. K. recebe correspondências e telefonemas de outros países, como o Canadá e Portugal, as correspondências “assinadas” por sua filha numa letra que ele sabe que não é a dela, e os telefonemas dados por pessoas desconhecidas que diziam que sua filha estava em segurança no país a partir do qual estava falando. No fim do romance, se revela que até hoje esses telefonemas se repetem, sempre que a mídia levanta de novo o caso do casal desaparecido, mas ao longo do livro desfilam indicações que dão certeza de que o casal foi sequestrado, barbaramente torturado e finalmente assassinado, sem que os corpos jamais tenham sido entregues às respectivas famílias. Compare-se a busca de K. com a busca dos Kucinski, relatada pelo próprio Bernardo, lembrando-se que no antigo Departamento da Ordem Política e Social-Dops, a polícia política estadual de São Paulo, foi localizada uma ficha dizendo simplesmente que Ana Rosa havia sido presa a 22 de abril de 1974: “Minha irmã, Ana Rosa Kucinski, e meu cunhado, Wilson Silva, foram presos e desaparecidos em São Paulo, na tarde de 22 de abril de 1974. Nesse dia, Wilson Silva e seu colega de trabalho Osmar Miranda Dias foram fazer um trabalho de rotina, saindo do escritório da Av. Paulista para o centro da cidade, um pouco antes da hora do almoço, após o que Wilson se separou de Osmar dizendo que iria se encontrar com sua esposa Ana Rosa, na Praça da República. A partir desta tarde, nunca mais foram vistos. A família tomou conhecimento, através de colegas, da ausência de Ana Rosa na Universidade e, de imediato, passou a tomar providências no sentido de localizar o casal. “Impetrou-se Habeas Corpus através do advogado Aldo Lins e Silva, sem nenhum resultado. No dia 10 de dezembro de 1974, foi enviado pedido de investigação à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Meses depois, a família recebeu resposta da OEA, onde esta afirmava que, consultado, o Governo Brasileiro declinava qualquer responsabilidade no episódio. “O general Golberi do Couto e Silva chegou a reconhecer, em dezembro de 1974, que Ana Rosa se encontrava presa numa instituição da Aeronáutica. “O governo americano - por meio do Departamento de Estado - encaminhou informações à família de que Ana Rosa ainda estaria viva, presa em local não sabido e que Wilson Silva provavelmente estaria morto. “As famílias dos desaparecidos políticos estiveram com o General Golberi do Couto e Silva em Brasília, em audiência solicitada por D. Paulo Evaristo Arns. Dias depois, o Ministro de Justiça, Armando Falcão, em nota oficial, informou sobre os ‘desaparecidos políticos' e incluiu na lista nomes de pessoas que jamais foram tidas como desaparecidas. Em relação a Ana Rosa e Wilson Silva, a nota do Ministério alegava que eram ‘terroristas' e estavam ‘foragidos'. “Amílcar Lobo, o médico psiquiatra envolvido com torturas no Rio de Janeiro, e que resolveu denunciar os assassinatos políticos, em uma entrevista comigo, quando lhe mostrei fotos de minha irmã e seu marido, este reconheceu as fotos de Wilson Silva como sendo uma pessoa que ele atendera após uma seção de torturas. Quanto a Ana Rosa, entretanto, o reconhecimento foi positivo, mas não categórico." Esclareça-se que o casal era integrante da Ação Libertadora Nacional-ALN, fundada pelo dirigente comunista Carlos Marighella. Essa é a mesma história ficcionalizada em “K.”, mas, como toda grande obra de arte depois da revolução modernista, ela aparece fragmentada, em textos em geral curtos que podem ser lido independentemente uns dos outros e em qualquer ordem, que continuam fazendo sentido. O autor, Bernardo Kucinski, nascido em 1937, graduou-se em Física em 1968, na USP, mas começou a trabalhar como jornalista. Depois de ter participado da cobertura da revista “Veja” sobre torturas, ameaçado pela repressão, transferiu-se para a Inglaterra, onde se tornou jornalista da BBC, correspondente do semanário “Opinião”, de oposição ao regime militar, e da “Gazeta Mercantil”. De volta ao Brasil em 1974, atuou nas publicações oposicionistas “Movimento” e “Em Tempo” e em jornais e revistas nacionais e do estrangeiro, como “Gazeta Mercantil”, “O Estado de S. Paulo” e o inglês “The Guardian”. Em 1986, tornou-se professor de Jornalismo na USP; filiado ao PT, trabalhou para o ex-presidente Lula como fornecedor de um resumo diário de informações da mídia, tanto na campanha eleitoral como na Presidência. É autor de cerca de quinze livros sobre jornalismo, política e problemas sociais econômicos e de saúde, publicados no Brasil, na Inglaterra e na França. Agora, aos 74 anos, se consagra já como grande romancista em seu primeiro livro de ficção. - Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance “O mundo como obra de arte criada pelo Brasil”, Editora Casa Amarela.

2 comentários:

Rubens Ap. dos Santos disse...

RENATÃO, eu discordo da sua resenha, considero literariamente o livro excelente, mas os elementos da ditadura aos quais vc se refere o autor, não o faz e quando o faz, faz muito pouco. Considero isso um recurso literário. Mas este recurso usado por demais, acaba impedindo na verdade uma transparência necessária da memória e do que estes bandidos fardados fizeram com o povo brasileiro. De maneira que minha ressalva é quanto a esse aspecto que prejudica demais já um país sem memória. Tenho lhe procurado, mas não sei como fazer contato, pois o email da sua página não responde. Gostaria de conversar sobre seu livro Quatro-Olhos. Abraços, Rubão

Renato Pompeu disse...

rrpompeu@uol.com.br