23 de dezembro de 2013

Textos que li e escrevi sobre futebol

Permitam-me apresentar-me: aos 72 anos sou jornalista desde 1960, há 53 anos, com passagens pelo jornal Folha de S. Paulo e revistas Veja e Caros Amigos – nesta ainda escrevo – e publiquei 22 livros de ficção e de não-ficção desde 1976, há 37 anos; o mais recente, o romance-ensaio “O mundo como obra de arte criada pelo Brasil”, foi lançado pela Editora Casa Amarela em 2008. Sobre futebol, publiquei três livros: o romance “A saída do primeiro tempo”, pela Editora Alfa-Ômega, em 1978, e, já no século 21, a autobiografia ficcional “Memórias de uma bola de futebol”, pela Editora Escrita, e a biografia real, ou melhor, o ensaio biográfico “Canhoteiro, o homem que driblou a glória”, pela Ediouro, um resumo da vida desse jogador do São Paulo FC, do qual não sou torcedor, e sim da AA Ponte Preta. Como a grande maioria dos brasileiros, meu interesse pelo futebol começou na infância, na primeira metade dos anos 1940, na cidade de São Paulo, onde sempre morei, apesar de ter nascido em Campinas-SP. Meus pais não eram muito interessados em futebol – meu pai só se interessava em assistir, levando a nós, seus filhos, à final anual, sempre na capital, do Campeonato Paulista de Futebol da Segunda Divisão, acredito que para reforçar suas raízes interioranas, pois em geral eram equipes do Interior que se enfrentavam para tentar subir à Primeira Divisão. Apesar de estabelecido na capital desde a passagem dos anos 1930 para os anos 1940, meu pai manteve sempre fortes vínculos com o Interior, pois era jornalista especializado em agricultura. Mas, se não fui iniciado no futebol pelo meu pai, já o meu irmão mais velho, Sérgio, já falecido e que chegou a diretor-adjunto da revista Veja em tempos melhores dessa publicação, era futebolista praticante, coisa que nunca fui, e eu aprendi a seguir com ele, pelo rádio e pela imprensa, os jogos do Campeonato Paulista, do Torneio Rio-São Paulo, do Campeonato Brasileiro (naquela época disputado por Seleções Estaduais), da Copa do Mundo (eu tinha 8 anos na época da Copa realizada no Brasil em 1950). Levado pelo influxo da Copa, desde criança me tornei internacionalista, pois acompanhava pela imprensa, desde os anos 1940, os campeonatos na Europa, torcia pelo Porto em Portugal, pelo Fenerbahce na Turquia, pelo Malmoe na Suécia, etc. Também, a partir dos meus 9 anos, li dezenas de vezes as centenas de páginas da edição especial de A Gazeta Esportiva sobre a Copa de 1950 e foi então, ainda antes de ler livros das diversas literaturas nacionais, que passei a me interessar pelas diferentes culturas das tão variadas etnias de nosso planeta. Foi pelo futebol que cheguei a essa visão multiculturalista. Como eu não jogava futebol, apenas atuei umas poucas vezes como goleiro e como lateral direito, mantive aceso o meu interesse por esse jogo não só acompanhando os campeonatos e torneios, mas também lendo tudo o que estava a meu alcance sobre o assunto. Me impressionaram muito, nos anos 1950, dois artigos que li na então Folha da Manhã, hoje Folha de S. Paulo; infelizmente não lembro o nome dos autores. Um deles dizia que, no futebol, os brasileiros “viam” uma sociedade não só melhor do que a realmente existente, como também a sociedade que queriam instaurar: em que todos tivessem direitos iguais e deveres iguais e em que não haveria distinções de raça, cor, ou origem social. O outro artigo era uma entrevista de um técnico europeu, segundo o qual os brasileiros não gostavam propriamente de futebol, e sim de torcer para um time de futebol. Em outras palavras, se um jogo envolvesse dois times sem maior torcida, mas de alto nível técnico, ele atrairia no Brasil muito menos atenção do que um jogo entre dois times de grande torcida de bem menor nível técnico. Levo a sério até hoje esses dois artigos e acredito mesmo que, juntando os dois, se pode desenvolver o conceito de que o povo brasileiro cultua uma “democracia hierarquizada”, segundo o qual todos devem ter direitos iguais, mas na prática os “grandes” têm mais direitos do que os “pequenos”, o que se constata pelas constantes e sistematicamente não levadas em conta falhas da arbitragem contra os “pequenos” nos jogos com os “grandes”. Outra leitura que me impressionou bastante durante os anos 1950 foi o romance dos anos 1930 “Juventude sem Deus”, do escritor húngaro então radicado na França, Odon Horvath, sobre o clima favorável ao nazismo na juventude da Áustria dos anos 1920. Uma cena particularmente me calou fundo no espírito: um jovem, praticamente um menino, doente e acamado, pede para ser visitado por goleiro de que era fã. O goleiro, à beira do leito, narra sua experiência em jogos no Exterior. O que me ficou na lembrança é que o goleiro falava de suas dificuldades na Ilha de Malta, onde não há vegetação e os campos de futebol são empedrados. Esse ambiente nos campos de Malta me ficou na cabeça como um ambiente ao mesmo tempo acolhedor e hostil. Acolhedor porque o goleiro falava com emoção de seus jogos em Malta. Hostil porque a áspera rugosidade da pedra rasgava sua pele nos saltos mais bruscos para pegar a bola. Hoje percebo que esse ambiente a um tempo acolhedor e hostil é uma metáfora do mundo ao qual, segundo os existencialistas como Jean-Paul Sartre, tão importantes na minha adolescência em todo o mundo, somos lançados ao nascer. Ainda nos anos 1950, também me impressionou, como indicação da importância do futebol para as mulheres das camadas populares nos anos 1920, entre a colônia italiana de São Paulo, o conto “Corinthians (2) vs. Palestra (1)”, do escritor Alcântara Machado, em sua coletânea “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927). Finalmente, me impressionou igualmente, nos anos 1950, um conto do jornalista esportivo Wilson Brasil, publicado no semanário “Equipe”, que ele dirigia. Era a história de dois irmãos gêmeos, um que jogava futebol muito bem e se tornou jogador profissional de um grande time, e outro que jogava muito mal, mas tinha ascendência sobre seu irmão craque. O que jogava mal convenceu o craque a pôr em prática o seguinte esquema: durante a maioria dos jogos, o craque levava seu time a vitórias, pois além de altamente técnico e goleador, o craque também era o cérebro da equipe. Nos jogos decisivos, porém, o irmão perna-de-pau jogava no lugar do craque. Jogava muito mal, desorganizava o time, impedia gols a favor, facilitava os ataques e os gols adversários, mas sem dar na vista, pois o irmão perna-de-pau simplesmente se empenhava o máximo que podia, dava o sangue, como se diz, e para a torcida aparecia simplesmente que o grande craque, apesar de se esforçar ao máximo, não estava num dia de sorte. Com isso os dois irmãos ganham fortunas nas apostas contra seus próprios times. Um conto engenhoso, como se vê. Ainda nos anos 1950, produzi meu primeiro texto relacionado com o futebol. Eu estudava inglês na Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa e o professor escocês Stanley Paetz encomendou uma composição com tema livre. Descrevi um jogo real entre Corinthians e Palmeiras a que eu tinha assistido. Me lembro que contei que havia o mito de que, quem ganhava na preliminar, na época disputado pelas equipes de aspirantes, ou seja, reservas (não havia substituições naquele tempo), perdia na partida entre as equipes titulares. O professor Paetz era fã do futebol brasileiro e uma vez o encontrei nas gerais do Pacaembu, num jogo Palmeiras vs. Santos que terminou 0 a 0, e ele comentou: “Marmelade”, misturando o inglês com o português. Na passagem dos anos 1950 para os 1960, eu, perto dos vinte anos de idade, entrei no curso de Ciências Sociais da USP, em que davam aula Fernando Henrique Cardoso, Ruth Faria Cardoso e Octavio Ianni, mas não completei o curso, por ter começado no mesmo ano de 1960 a trabalhar em jornal, e principalmente por ter o regime militar destruído o curso. Me lembro que comentei com uma colega que, se a ciência social não desse uma explicação satisfatória para o interesse das pessoas pelo futebol, não poderia ser considerada uma ciência social satisfatória. Como a maioria das pessoas intelectualizadas daquela época, ela encarou com mofa o meu interesse pelo assunto. Ela encarava o futebol como uma mera “alienação”, indigna de ser levada em conta. Hoje, a quem diz que o futebol é uma “alienação”, como defende o intelectual marxista inglês Tom Eagleton, que também considera o futebol indigno de estudo, eu pergunto: “Mas por que as grandes massas escolheram o futebol, e não outra coisa qualquer, para se alienarem? E não poderíamos considerar também a literatura, a música, as artes plásticas e o cinema como outras tantas ‘alienações’ das pessoas intelectualizadas?” Aos que reclamam dos altos ganhos dos atletas mais famosos, respondo: “Os artistas de cinema mais famosos também têm altos ganhos e ninguém reclama”. No decorrer dos anos 1960, fui lendo tudo que podia de futebol nos arquivos das empresas jornalísticas em que trabalhava e ainda, como eu ganhava bem, comprei vários livros importados que tratavam de esportes em geral e do futebol em particular. Me impressionou particularmente o que li numa enciclopédia em inglês – não lembro qual era – sobre as diferenças entre o futebol europeu e o futebol sul-americano, bem entendido, naquela época, já que hoje as coisas estão bastante mudadas. Ele dizia, com seus olhos de europeu daquele tempo, que os atacantes sul-americanos ficavam trocando a bola infindavelmente, aparentemente sem objetivo (“seemingly aimlessly”), até que de repente um deles chutava em gol e marcava, surpreendendo os adversários europeus. Eu guardei isso na cabeça, pois de modo nenhum, a mim, com meus olhos de sul-americano, me parecia que nossos jogadores tocassem a bola “aparentemente sem objetivo”. Assim, eu aprendi pelo futebol que o mesmo fato, presenciado por pessoas diferentes, dá origem a outras tantas descrições diferentes, por mais objetiva que cada pessoa busque ser. Também li nos anos 1960, acho que na Enciclopédia Delta, em português, uma interessante explicação das origens do chamado esquema 4-2-4, assim batizado pela imprensa europeia o sistema brasileiro, desconhecido dos europeus, que levara a Seleção Brasileira a ser bicampeã mundial em 1958 e 1962. Os próprios brasileiros ainda escalavam a seleção no sistema 3-2-5 e demoraram a aceitar a nova denominação 4-2-4. Segundo a história contada na Delta, desde os anos 1920 até os anos 1950 tinha vigorado em todo o mundo o esquema WM, que podemos chamar de 2-3-3-2, com dois beques, três médios, três meias e dois atacantes. O grande organizador do jogo era o centromédio. No pós-Segunda Guerra Mundial, se observou na Europa a tendência geral de reforçar a defesa e, com isso, o melhor jogador do time, sempre o centromédio, teve de recuar para trás dos beques, originando-se o líbero. Mas, quando tentaram introduzir esse esquema no Brasil, os altivos centromédios de então, tendo à frente Brandãozinho, da Portuguesa de Desportos de São Paulo, se recusaram a recuar para a defesa, a qual julgavam um “trabalho inferior”. Disseram que, ao invés deles, deveria recuar um dos médios laterais. Os centromédios venceram: em alguns clubes recuou o médio lateral direito, em outros clubes recuou o esquerdo. Surgiu então o que se chamou de “diagonal”, e nos dois casos um lado da defesa ficava mais desguarnecido do que o outro. Esse esquema era o que ficou consagrado na escalação dos times, o 3-2-5. Mas, em meados dos anos 1950, tentando reparar aquele desequilíbrio, o técnico do Bonsucesso do Rio de Janeiro, o famoso rubroanil leopoldinense da rua Teixeira de Castro, Martim Francisco, fez recuar no seu time também o outro lateral, e o centromédio partilhar a armação de jogadas com um dos meias. Surgia o 4-2-4, que foi aperfeiçoado no São Paulo FC pelo técnico húngaro Bela Gutman, campeão paulista de 1957, e consagrado na Seleção Brasileira pelo técnico Vicente Feola, campeão mundial de 1958, mas que só foi batizado, então, pela imprensa europeia. Pois, apesar de jogar no 4-2-4, a Seleção ainda era escalada no 3-2-5: Gilmar, Djalma Santos, Bellini e Newton Santos: Zito e Orlando; Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo. A escalação real seria Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Newton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagalo. Assim, os dois primeiros títulos mundiais do Brasil se devem, em parte não negligenciável, à rebeldia dos altivos centromédios da época, segundo li na Enciclopédia Delta. Ainda nos anos 1960, eu participei da grande equipe que fez o texto final da cobertura da Copa de 1966 pelo Jornal da Tarde de São Paulo. Recebíamos telexes de nossos enviados à Inglaterra e despachos das agências internacionais, e ainda ouvíamos pelo rádio a transmissão. Fui encarregado dos trechos referentes à torcida brasileira presente no estádio durante o jogo do Brasil com Portugal e me lembro que, no intervalo, escrevi: “Estamos todos mortos em Liverpool”, pois o primeiro tempo já definira a derrota e a desclassificação da Seleção Brasileira. Na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, me impressionaram os livros “O negro no futebol brasileiro”, do jornalista Mário Filho, irmão do dramaturgo, escritor e cronista Nelson Rodrigues e cujo nome foi dado ao Estádio do Maracanã, por sua contribuição como o diretor do Jornal dos Sports, e “Nos subterrâneos do futebol”, do jornalista e técnico de futebol João Saldanha, sobre sua experiência como técnico do Botafogo do Rio. O livro de Mário Filho descreve de uma forma épica como o futebol mudou drasticamente o modo dos brasileiros brancos verem os brasileiros negros e o modo dos brasileiros negros se verem a si próprios. Passou-se de seculares estereótipos negativos para a apreciação objetiva e positiva das grandes contribuições que os negros fizeram para a nossa sociedade. Isso me lembrou a importância que Pelé, por exemplo, teve para os negros do mundo inteiro e para as visões dos não-negros no mundo inteiro sobre os negros. Já do livro de Saldanha a lembrança maior que tenho é que o técnico era sempre enganado por Garrincha, que deixava amontoados de cobertas sobre sua cama na concentração, enquanto saía às ruas para namorar, sem que o técnico, em suas olhadelas pelos quartos, verificasse que o craque não estava dormindo, como parecia. Outra lembrança é de que o craque Didi, casado com a famosa Dona Guiomar, simplesmente não saía do hotel nem mesmo nas horas de folga e de passeios e compras, pela certeza que tinha que, mesmo em países distantes, como o México, por exemplo, a ciumenta Dona Guiomar ia aparecer na rua e fazer cobranças. Nos anos 1970, meu interesse pelo futebol começou a render os seus frutos mais maduros. Munido da visão naquela época ainda polêmica de que o futebol era uma das mais importantes estâncias da vida humana, fui encarregado pela revista Veja, onde então eu trabalhava, de redigir, em conjunto com o consagrado jornalista Tão Gomes Pinto, o texto final da cobertura sobre a Copa de 1974. Com uma brilhante atuação dos repórteres de campo na Alemanha então Ocidental, Tão e eu fizemos um trabalho que, a par de extremamente informativo, aspirava a ser ao mesmo tempo artístico e ensaísta. Me lembro que escrevi que, a julgar pela indefinição do time por parte do treinador Mário Jorge Lobo Zagallo, que havia um “passeio dançarino” de vários atletas por diferentes posições, pois a escalação e o esquema tático variavam ao infinito de jogo para jogo e de treino para treino, e que o destino da Seleção vagava “da catástrofe iminente a uma fantástica perfeição absoluta: o futebol definitivo” com onze supercoringas capazes de jogar em qualquer posição durante o jogo. Um fenômeno curioso: na mesma semana em que escrevi a palavra “avantesma”, referindo-me à possibilidade para mim remota de que a Seleção fosse desclassificada já na rodada inicial, o compositor Ary Barroso deu uma entrevista, não me lembro se ao rádio ou à televisão, em que perguntava quem usaria hoje a palavra “avantesma”? Também escrevi que os torcedores temiam que a nova cabeleira afro do atacante Jairzinho “amorteça o impacto de suas cabeçadas”, e que os jogadores brasileiros apresentavam com explicação de seu mau desempenho a chuva, “como se nunca tivesse chovido no Rio e em São Paulo”. Dois anos depois, lancei meu primeiro livro, o romance “Quatro-Olhos”, sobre a repressão no regime militar – publicado em 1976, em pleno regime militar – sem maiores referências ao futebol. Mas no ano seguinte, em outubro de 1977, fui convocado pela Veja para escrever sobre a saga de 23 anos sem títulos do Corinthians, que estava disputando a final do Paulista justamente contra a minha Ponte Preta. Publiquei, no número 475 da revista, 12 de outubro de 1977, páginas 128-130 ,o artigo “Uma arte feita pelo povo”, em que eu defendia a tese de que o futebol era um espetáculo, não um “esporte”, e que a torcida no Campeonato Paulista reproduzia as relações entre as camadas sociais de São Paulo, com o Corinthians representando o “povão”, o Palmeiras representando a “classe média de origem imigrante” e o São Paulo representando a “aristocracia oligárquica” (essas afirmações teriam de ser hoje relativizadas e nuançadas, mas na época eram bem descritivas da situação sentida pelos torcedores, tanto que o artigo ganhou o Prêmio Abril de Esportes em 1977). A partir disso, comecei imediatamente a escrever, ainda em outubro de 1977, dois textos sobre o futebol. Um deles era um romance sobre um “espectro”, o espectro da Ponte Preta, na forma do espírito de uma preta velha e gorda, que vagava pelos ares de Campinas e tocava de leve a testa de seus habitantes, provocando pequenas alterações nas atitudes, nos pensamentos e nos comportamentos deles. O outro texto era uma tese que eu julgava entre filosófica e científica do futebol, em que eu pretendia aplicar o formato teórico do primeiro capítulo de “O Capital” de Marx ao estudo do futebol. Quando terminei o artigo, eu pretendia levá-lo para publicação nos “Cadernos do Cebrap”, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, então recém-fundado por Fernando Henrique Cardoso, mas uma amiga minha, Ana Maria Franco Brisola, mulher do também consagrado jornalista Dirceu Brisola, observou que, não tendo eu diploma universitário, e tendo passado ano e meio internado em hospital psiquiátrico, e ainda a visão vigente na época nos meios intelectuais em relação ao futebol como algo entre frívolo e nocivo, minha tese seria considerada uma maluquice. Ela sugeriu que, ao invés disso, eu inserisse a tese no romance como uma tese produzida por um personagem, pois a tese seria mais palatável como “ficção”. Assim nasceu o meu segundo livro e meu segundo romance, “A saída do primeiro tempo”, lançado em 1978. A tese foi na época bem recebida por duas pessoas que combinavam a formação teórica com o interesse pelo futebol: o jornalista esportivo Juca Kfouri, formado em Ciências Sociais, e o filósofo Bento Prado Jr., torcedor do XV de Jaú e do Palmeiras e ex-goleiro, que se referiu ao meu trabalho como “uma tese hegeliana”. Eu a considero defensável até hoje tanto como tese filosófica como na qualidade de tese científica. Em linhas gerais, a tese é de que o futebol não é um esporte, mas um espetáculo dramático, que se distingue por duas razões dos demais espetáculos dramáticos, como o teatro e o cinema. Em primeiro lugar, o futebol não retrata um conflito entre personalidades, mas entre duas instituições sociais, que são, em primeiro plano, os dois times em disputa. Em segundo lugar, no futebol, não há um roteiro pré-definido, os próprios atores, os jogadores, não sabem de antemão qual o desenlace de suas ações. Além disso, no plano simbólico, cada time em disputa no plano real pode representar um grupo social extracampo. Desse modo, o Corinthians representa o “povão”, o Celtics de Glasgow representa os “católicos” e o Barcelona representa os “habitantes de Barcelona” e, por extensão, os “catalães”. Assim a torcida acaba participando do espetáculo e o futebol ensina a seus torcedores, desde a infância – o futebol, segundo a tese, “é muito importante na socialização da criança” –, que a vida é feita de vitórias e de derrotas, mas que a instituição a que pertencemos sobrevive a tudo isso. Com isso, o público, as torcidas, acabam também fazendo parte do espetáculo e desempenhando papéis dramáticos. Mas em todas essas situações o futebol ainda não se distingue dos demais esportes com bola, como o basquete, o rugby, o futebol americano e o beisebol, entre outros. A grande especificidade do futebol é a prioridade dada aos pés, enquanto todos os demais esportes priorizam as mãos. Ora, na passagem do século 18 para o século 19, o futebol tal como o conhecemos surgiu em paralelo com a Revolução Industrial. A partir desta, pela primeira vez na história, a massa dos seres humanos passou a trabalhar ou de pé parado diante de uma máquina, ou sentado parado a uma mesa. Durante toda a história anterior quem trabalhava se movimentava bastante, seja como lavrador, seja como criador de gado, seja como coletor de impostos in-natura. Aqueles trabalhadores de pés imobilizados iriam ser justamente atraídos por uma atividade que movimentasse os pés – então as classes trabalhadoras passaram, segundo minha tese, a se reconhecer no futebol como classes trabalhadoras fora do local e das condições de trabalho. Por isso o futebol “deu certo” na Europa e na América do Sul, onde as classes trabalhadoras aspiraram a um maior poder político, social e cultural, e “não deu certo” nos Estados Unidos, onde as classes trabalhadoras não existem fora do local de trabalho e assim se identificam com, por exemplo, o basquete, o qual, segundo a tese, “é muito parecido com uma linha de montagem”. Já o futebol americano nos Estados Unidos, como o rugby na Grã-Bretanha, Europa e em antigos países coloniais, são esportes de camadas superiores da sociedade, especialmente universitários de elite, e servem como preparação para a guerra, especialmente para a guerra colonial. Quanto ao beisebol, em que a cada momento basicamente um único jogador é que de fato enfrenta todos os do adversário, representa a visão, corrente mesmo entre os trabalhadores americanos, do sonho americano de ascensão individual, do “um herói contra o mundo hostil que o cerca”, e que, ao subir, leva consigo os que lhe são mais próximos. Finalmente, no Japão da época da tese, anos 1970, o beisebol havia sido adotado como esporte nacional em paralelo com o fato de que o emprego no Japão era patrimonial, isto é, o trabalhador era um membro da “família extensa” que era a empresa, já que seu emprego era perpétuo e as promoções eram por idade, como numa família. Assim cada trabalhador era um “samurai” que, como um jogador de beisebol, lutava em sua tarefa isolada em nome do grupo. Pelo menos é isso que dizia a tese. Acho que atualmente ela teria de constatar que, no Japão, a ascensão do futebol nas últimas décadas ocorreu em paralelo com o fim do emprego perpétuo e da estrutura de “família extensa” de cada empresa. Nos Estados Unidos, as dificuldades que a presente crise econômica cria para os trabalhadores em geral e para a ascensão individual em particular, ocorrem em paralelo com o aumento do interesse pelo futebol, notavelmente entre as mulheres. A ponto de que políticos conservadores quiseram proibir a prática do futebol nas escolas, sob a alegação de que é um esporte “estrangeiro, antiamericano, socialista”. Outra atualização que teria de ser feita na tese é que, de lá para cá, decaiu bastante a noção de pertencimento a um grupo social definido, como “a classe trabalhadora”. Torcedores que não têm mais essa noção tendem a se julgarem pertencentes unicamente à torcida de seu time. Quando o time perde, não há uma instituição maior a que se apegar. O resultado são atos de violência. Ou seja, surgiram os “hooligans”. Um ponto notável é que a tese observava que o interesse dos trabalhadores ingleses pelo futebol na segunda metade do século 19 ocorreu em paralelo com a luta pela diminuição das horas de trabalho. Isso originou a chamada “semana inglesa”, em que só se trabalha na manhã de sábado, não se trabalha na tarde de sábado. Ocorre que, na Grã-Bretanha da época, o domingo, como o sábado dos judeus, era inteiramente dedicado à devoção religiosa. Na verdade, até os anos 1960, o campeonato inglês tinha jogos somente aos sábados, nunca aos domingos. Disso a tese deduzia que os trabalhadores, impedidos de jogar e de assistir a jogos de futebol nos domingos, forçaram a folga nas tardes de sábado, para poderem se dedicar ao futebol. Esse movimento de reduzir as horas de trabalho em função do futebol se observa até hoje: durante a Copa do Mundo, a tendência em muitos países é não trabalhar nos dias, ou pelo menos nas horas, em que cada Seleção Nacional joga. O mais importante, no entanto, é que, hoje, a partir da tese de 1978, acho que, no estudo do futebol, a constante transformação de um fenômeno em outro, a modificação do sentido de cada fenômeno conforme muda o contexto em que está inserido, é muito mais visível do que no estudo de outras realidades sociais, e prepara a mente para enfrentar mais dialeticamente essas outras realidades sociais. Por exemplo, originalmente o fato de o futebol ser jogado predominantemente com os pés não tinha nada a ver com a Revolução Industrial. O futebol era jogado nas escolas inglesas, até a passagem do século 18 para o século 19, mais com as mãos do que com os pés, como no futebol americano e no rugby até hoje. Era permitido carregar a bola com a mão e também a tentativa de tirá-la da mão do adversário que a carregava, o que originava o melê, em que vários jogadores tentavam agarrar a bola ou arrancá-la e acabavam caindo em grupo – como ocorre até hoje no futebol americano ou no rugby. Ocorre que passaram a existir escolas inglesas sem campos gramados e sim com quadras empedradas de jogos. O melê, nessas condições, era particularmente perigoso – os envolvidos acabariam lanhando a pele contra a pedra. Por isso, nessas escolas, ou foi proibido carregar a bola com a mão e também arrancá-la do adversário (uma solução adotada, na passagem do século 19 para o século 20, no desenvolvimento do basquete), ou foi proibido simplesmente tocar a bola com as mãos. Mas, transportado do contexto das escolas britânicas de elite para o contexto das camadas de trabalhadores envolvidas na Revolução Industrial, o fato da proibição das mãos no futebol mudou inteiramente de significado. Bem, depois da publicação desse livro em 1978, continuei a ler muito sobre futebol, mas não ficção e sim livros de estudos e pesquisas sobre futebol, na maioria estrangeiros. Só mais tarde, acredito que a partir de meados dos anos 1990 (não tenho bem certeza), é que começou a sair mais frequentemente uma produção científica ou documental sobre o futebol no Brasil. Devo dizer que em momento nenhum encontrei, em obras europeias, americanas ou brasileiras sobre o futebol, nenhum motivo para reformular o centro de minha tese, o de que a preferência de determinadas sociedades por determinados esportes não se dá por acaso, mas por razões que têm a ver com a existência e a vivência sociais nessas sociedades. Nunca consegui ter tempo, recursos financeiros, e muito menos nunca consegui me disciplinar intelectualmente, para aprofundar meus estudos sobre futebol, particularmente para enriquecer e confrontar com documentação empírica os desdobramentos do que julgo terem sido minhas constatações teóricas. Continuei lendo e escrevendo sobre futebol. Cheguei a reunir uma biblioteca respeitável de obras internacionais sobre futebol, mas tive de me desfazer dela em 1999, por motivos financeiros. Tenho lido o que posso sobre futebol pela Internet. Me impressionaram particularmente os poemas de João Cabral de Mello Neto e de Carlos Drummond de Andrade sobre futebol. Continuei e continuo até hoje escrevendo sobre futebol, principalmente como jornalista. A partir de discussões com um intelectual americano e com um intelectual australiano, pela Internet, passei a pesquisar também, recentemente, outros esportes com bola além do futebol. Convenci-me de que o voleibol é um esporte que atrai pessoas que não apreciam conflitos sociais mais agudos (não há contato físico entre os adversários). Que o tênis é um esporte de burgueses, ou de pessoas de mentalidade burguesa, que se enfrentam individualmente sem entrar na “propriedade” do outro, ou seja, sem entrar na outra metade da quadra. E que o golfe é um esporte de grandes burgueses, pois, exatamente como um grande especulador financeiro, o golfista atua isoladamente, de acordo com seus interesses e possibilidades, sem interagir com os demais golfistas, sem enfrentá-los diretamente, mas procurando derrotá-los indiretamente. Ainda mais porque, pelo que sei, o golfe surgiu na Holanda na época em que se iniciaram naquele país as grandes especulações financeiras internacionais. Mas procuro não cair nas armadilhas do reducionismo. Sei muito bem que tudo isso acontece no plano simbólico, não no plano real. Nem todo torcedor de time “popular” é defensor das causas populares e nem todo torcedor de time “oligárquico” é favorável às oligarquias. Renato Pompeu é jornalista e escritor.

2 comentários:

mauricio miele disse...

Extraordinário.
Lamento minhas condições, meu pauperismo intelectual, não permitirem estabelecer um diálogo contigo.
Espero que a exposição dessas tuas ideias faça com que um editor promova as condições para que elas aconteçam na forma de um livro.

Roberto F. Simões disse...

fico feliz com textos assim, ainda mais por serem completos e com conteúdo excelente. Gostaria de poder argumentar e até mesmo entender melhor mas fico limitado aos meus conhecimentos supérfluos. Parabéns pelo texto!