13 de janeiro de 2014

A alegre Paris dos nazistas

Do Diário do Comércio de São Paulo - Paris foi uma festa... sob a ocupação pelos nazistas - Renato Pompeu - Com apenas alguns meses de lançamento, chega à primeira reimpressão a edição brasileira do livro do jornalista britânico nascido no Brasil, Alan Riding, sobre a vida cultural francesa sob a ocupação nazista. Trata-se de “Paris – A festa continuou – A vida cultural durante a ocupação nazista, 1940-4”, livro publicado pela Companhia das Letras. Na verdade, no original de Riding, de 2010, não há essa evocação do título do célebre livro do escritor americano Ernest Hemingway, “Paris é uma festa”, sobre a efervescência parisiense nos anos 1920 e 1930. O título do autor britânico, traduzido literalmente, seria “E o show continuou – Vida cultural na Paris ocupada pelos nazis”, e alude ao célebre ditado teatral “O show deve continuar”, aconteça o que acontecer. O fato é que o próprio título original de Hemingway não falava em Paris: era algo assim como “Uma festa móvel” ou “Uma festa portátil”. De todo modo, é interessante que tenha sido um escritor britânico a escarafunchar os arquivos para deslindar em miúdos o que fizeram os grandes nomes da cultura francesa durante a ocupação de Paris pelas tropas nazistas. Os próprios franceses não gostam de recordar que, após um intervalo de poucas semanas após a entrada dos soldados alemães, a cantora Edith Piaf e o cantor Maurice Chevalier continuaram entoando suas canções livremente, embora fizessem questão de cantar, também, para os prisioneiros de guerra franceses na Alemanha. Também Matisse continuou a pintar normalmente e Picasso (que, embora espanhol, era um verdadeiro monumento francês), se foi procurado pelos nazistas, foi para admirarem as obras que ele estava criando, como aconteceu com o dignitário alemão Gerhardt Heller. Picasso, apesar de ter pintado “Guernica”, retratando uma pequena cidade basca bombardeada e arrasada por aviões alemães durante a Guerra Civil Espanhola, foi muito bem tratado pelos ocupantes. A ponto de se dizer que, quando ele se filiou ao Partido Comunista Francês logo após a Libertação, foi muito mais para se livrar da possibilidade de ser visto como colaboracionista do que propriamente por convicção ideológica. Acrescente-se que, durante a Ocupação, um grande nome francês da pintura, Maurice de Vlaminck, chegou a visitar a Alemanha como hóspede de honra. Em suma, as vibrantes noitadas parisienses prosseguiram a todo vapor, apenas tinham de agradar, além de seus públicos tradicionais e costumeiros, também os nazistas. Não foram mais rodados ou exibidos filmes com atores, diretores ou técnicos judeus, mas o teatro continuou intocado. Autores como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Jean Anouilh continuaram edificando o público nesses anos de chumbo. Quanto a Sartre, ele lançou para o novo público não só a sua peça “As moscas” como também a sua grande obra de filosofia “O ser e o nada” e Camus estreou no romance com “O estrangeiro”, e lançou o seu principal livro filosófico, “O mito de Sísifo” – quatro obras contra as quais os censores nazistas nada tiveram a objetar. Duas das peças mais importantes de Anouilh, “Eurídice” e “Antígona”, estrearam durante a Ocupação. Também foram permitidas pelas autoridades alemãs publicações de livros de Simone de Beauvoir (o romance “Ela veio para ficar”), Marguerite Duras (o romance “Os Impudentes”) – ela ainda foi secretária da comissão indicada por editores franceses e reconhecida pelas autoridades nazistas para controlar a distribuição de papel de imprensa, comissão que tinha assim um papel na censura –, Louis Aragon (cinco livros de poemas, inclusive o ciclo sobre Elsa, mais um romance, “Os viajantes da Imperial”) e Paul Éluard (os poemas com os significativos títulos, dadas as circunstâncias, de “Poesia e verdade” “Liberdade” e “Sete poemas de amor em guerra”). É claro que vários desses grandes nomes da cultura, além de durante a Ocupação estarem empenhados em entreter e ilustrar, com obras aprovadas pela censura, um público que incluía as autoridades nazistas e os soldados alemães, também dedicavam algum tempo a atividades clandestinas na Resistência aos invasores. O objetivo de Riding, afinal, não é o de denegrir o patriotismo ou a ética dos franceses que continuaram trabalhando sob os ocupantes nazistas, e sim o de chamar atenção para alguns dos dilemas mais agudos que seres humanos tiveram de enfrentar. É que, no meio do caminho entre os poucos que eram resistentes em tempo integral e foram mortos pelos nazistas e os muitos que eram colaboracionistas em tempo integral, dos quais uns poucos foram castigados após a Libertação, havia toda uma multidão de artistas e intelectuais que desempenharam todas as nuanças das atitudes possíveis de misturar ainda que fosse um mínimo de resistência com um mínimo de colaboração. Não diga “Desta água não beberei”, já diziam os antigos.

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