12 de janeiro de 2014

Um livro sobre o ouvido pensante

Do Diário do Comércio de São Paulo - Os sons que saltam dos textos de Schafer - Renato Pompeu - Com textos de até meio século atrás que são atuais, e, na verdade, proféticos ainda hoje, a Editora Unesp lança a segunda edição brasileira do livro “O ouvido pensante”, do compositor, professor universitário e animador cultural canadense Murray Schafer, que vai completar 80 anos de idade no ano que vem e que é responsável não só por ter criado novos sons para os ouvidos, como também por ter aberto os ouvidos para novos sons. Pois o fato é que a edição original foi publicada no Canadá em 1986, e era uma coletânea de textos escritos durante os vinte anos anteriores, mas as ideias contidas nos textos continuam ousadamente inovadoras. Pode-se dizer que são “textos sonoros”, verdadeiras aulas de bem ouvir, não só no sentido de ouvir música, e boa música em particular, mas no sentido de ouvir permanentemente todos os sons à nossa volta, sejam produzidos por músicos, sejam produzidos por atividades humanas na cidade e no campo (por exemplo, os sons do trânsito ou da construção civil), ou sejam produzidos pela natureza. Altamente criativo, Schafer é pioneiro há mais de cinco décadas na caracterização do que se chama de poluição sonora. Contra ela, criou o conceito do que chamou pela primeira vez de ecologia acústica, nomenclatura desde então consagrada no combate à poluição sonora, tendo criado ainda o conceito de paisagem sonora, com o neologismo em inglês “soundscape”. Também criou o conceito de “esquizossom”, isto é, ”som separado”. Trata-se do som que é isolado de seu ambiente costumeiro e transportado para outro ambiente sonoro. Por exemplo, o som de uma buzina, ou de uma britadeira, que é transposto para uma composição musical. Para Schafer, do mesmo modo que os seres humanos desaprenderam de ver, por exemplo, o céu, também desaprenderam de ouvir. Na Pré-História, na Antiguidade, na Idade Média, e mesmo até o triunfo da Revolução Industrial, praticamente qualquer ser humano, até mesmo de qualquer idade, sabia identificar as principais estrelas e sabia também identificar a origem de muitos dos sons que ouvia, por exemplo, de que pássaro era aquele pio. Hoje quase ninguém conhece o céu e poucos têm o que ele chama de “ouvido pensante”. Na paisagem sonora, ele distingue o que podemos chamar de sons de fundo, os sons de que quase sempre o ouvinte não está consciente, mas “ouve”, isto é, sente. São os sons da natureza, produzidos pelo soprar do vento, pelas correntes ou quedas d’água, ou suas ondas; a chuva, os sons emitidos por animais, pássaros ou insetos. Uma outra categoria seriam os sinais sonoros, nos quais se presta atenção, por significarem uma advertência, como os sinos, sirenas, buzinas. Finalmente, há o que Schaefer caracteriza de “marco sonoro”, os sons específicos de uma comunidade, por exemplo, o martelar de um funileiro na esquina em que fica sua oficina. O interessante é que, se é pioneiro no combate à poluição sonora, por esta tender a ser não só desagradável, como também nociva, ele é pioneiro igualmente, aqui de modo mais isolado, na insistência em preservar todo marco sonoro, por mais estridente, desagradável e nocivo que seja, como patrimônio cultural da comunidade a que se relaciona. Schafer, que dirige em Toronto o Centro Mundial de Paisagem Sonora, está na origem da reprodução, por meio de instrumentos eletrônicos ou eletroacústicos, de quaisquer sons de qualquer paisagem sonora ou de qualquer marco sonoro, inclusive os sons da voz humana, os apitos dos guardas de trânsito, os trovões. Essas paisagens sonoras e marcos sonoros, por meio particularmente da metodologia do esquizossom, tanto podem ser usados em composições musicais, o que tem ocorrido nas últimas décadas e não somente por músicos de vanguarda, como, por exemplo, para orientar deficientes visuais. Mais, todos esses conceitos podem ser usados para criar ambientes sonoros agradáveis aos ouvidos. Enquanto os métodos utilizados pelos engenheiros de som especializados contra a poluição sonora envolvem quase sempre a eliminação ou o rebaixamento de sons desagradáveis ou nocivos, com a utilização de meios técnicos como a contagem em decibéis, aqueles que podemos chamar de paisagistas sonoros, ao invés de eliminar sons “maus”, criam ou reproduzem sons “bons”, isto é, agradáveis e, por que não dizer, terapêuticos, pelo menos psicologicamente. Tudo isso surgiu a partir do trabalho pioneiro de Schafer, que está associado à concepção do grande compositor John Cage, de que o mundo inteiro é uma obra musical.

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